http://www.ghtc.usp.br/ram-r66.htm
Roberto de Andrade Martins |
Este artigo discute a dificuldade de apresentar-se conceitos físicos
corretos em obras de divulgação científica. Apresenta-se
como exemplo uma leitura crítica do livro A dança
do universo: dos mitos de criação ao big-bang, de Marcelo
Gleiser, analisando-se problemas conceituais da abordagem empregada
naquela obra. Mostra-se a existência de grande número de erros,
provenientes de uma utilização descuidada de imagens e comparações,
erros esses que poderiam ter sido evitados. O presente artigo discute a
parte daquela obra referente à física clássica, apenas.
A parte referente à física moderna será discutida
em um próximo artigo.
Os autores de livros de divulgação científica são muitas vezes mal vistos pela comunidade científica. As obras de divulgação costumam ser acusadas de distorcer a ciência, na tentativa de apresentar algo compreensível a um público mais amplo. Muitas vezes tais distorções ocorrem, realmente (e infelizmente). Por outro lado, deve o público ser privado de contato com o desenvolvimento científico? É claro que não. A cultura científica deve ser disseminada, e boas obras de divulgação podem atrair novos talentos para a pesquisa. Atualmente, a comunidade está cobrando uma retribuição social dos cientistas, e a divulgação científica poderia ser uma das formas pelas quais o público receberia um retorno do investimento realizado com o dinheiro dos impostos.
O problema é encontrar quem possa fazer bons trabalhos de divulgação científica. O ideal (difícil de atingir) é unir uma competência científica à capacidade de escrever de modo simples e interessante, mas não errôneo. Há alguns bons exemplos, na área da Física, como George Gamow (para citar um autor já falecido).
Há pouco tempo foi publicada uma obra que, infelizmente, serve como um contra-exemplo de boa divulgação científica: A dança do universo, de Marcelo Gleiser. Uma análise detalhada desse trabalho pode ser útil, pois o livro conta com um esquema de divulgação tão eficiente que, apesar de se tratar de um autor sem nenhuma experiência prévia, a obra já se tornou, desde o lançamento, um "best seller". Certamente muitos alunos (e professores) lerão esse livro e, sem estarem advertidos, poderão deixar de perceber o enorme número de falhas que ele contém.
A escolha deste trabalho específico para análise não
significa que eu o considere a pior obra já escrita, nem que tenha
algum problema pessoal com o autor (que não conheço). Alguns
meses atrás, fui convidado a participar de uma discussão
sobre o livro, e isso me obrigou a lê-lo. Fiquei bastante chocado
com o que encontrei na obra, e resolvi aproveitar o esforço gasto
na leitura redigindo algumas observações1. Creio
que o tipo de análise crítica aqui apresentada pode ser útil
aos estudantes e educadores, e servir também de alerta a autores
e editoras, para que procurem ser mais cuidadosos em trabalhos desse tipo.
1 Este artigo vai apresentar uma discussão crítica baseada na segunda edição do livro. Para poder acompanhar a análise aqui apresentada, é conveniente ter à mão o próprio livro. A primeira edição continha alguns outros problemas adicionais, que foram corrigidos e que não serão apontados aqui. No entanto, quem dispuser apenas da primeira edição, poderá encontrar as falhas aqui discutidas, nas mesmas páginas indicadas. |
A obra A dança do universo: dos mitos de criação ao big-bang seria, de acordo com seu título, um livro sobre a história das idéias cosmogônicas (ou seja, sobre a origem e desenvolvimento do universo). Em parte, de fato, o autor procurou seguir esse objetivo, mas acabou por incluir na obra a história da astronomia (nem sempre relevante sob o ponto de vista das cosmogonias) e de toda a física. Este é um primeiro problema da obra: tentar cobrir uma quantidade enorme de assuntos, dedicando a cada um deles apenas umas poucas páginas. É claro que muitos aspectos da evolução da física estão associados ao desenvolvimento das teorias cosmogônicas, mas é possível e desejável fazer uma seleção daquilo que se apresenta em um livro de divulgação. O livro trata da termodinâmica, mas não discute os interessantes aspectos termodinâmicos da cosmologia; enfoca o eletromagnetismo, mas não consegue relacioná-lo com o tema central do livro. Trata longamente das idéias de Kepler e Newton, mas não descreve o único trabalho cosmogônico importante dessa época – o de Descartes.
Pela abordagem adotada – essencialmente histórica – a obra pode e deve ser analisada sob o ponto de vista da fidelidade historiográfica. Há uma multidão de erros nas descrições históricas apresentadas, que não podem ser descritos aqui, sob pena de exceder os limites de tamanho permitidos a este artigo. Em outro local, espero poder apresentar uma discussão desses aspectos. Neste trabalho, no entanto, vou me concentrar na análise do conteúdo científico da obra, ou seja, vou discutir a física apresentada no livro, comentando o mínimo possível de aspectos históricos.
II – Astronomia antiga
Uma boa parte do livro não precisa ser discutida aqui: quase toda a parte inicial, em que não é apresentado nenhum conhecimento científico moderno. No entanto, mesmo na parte inicial, é necessário chamar a atenção para alguns pontos que contêm equívocos científicos.
Quando tenta descrever as idéias dos pitagóricos sobre o sistema solar, o autor apresenta uma descrição dos fenômenos astronômicos observáveis da Terra:
Um erro semelhante pode ser encontrado quando o autor se refere à precessão dos equinócios:
2 Ao invés de “epicliclos”, o termo correto seria “epiciclos”. |
A precessão dos equinócios não é isso. Os equinócios (de primavera e de outono) são os dias nos quais a duração do dia e da noite são iguais (daí o seu nome). Esses dias ocorrem quando, em seu movimento aparente em torno da Terra, o Sol atravessa o equador celeste. Atribui-se a Hiparco a descoberta de que o Sol não está sempre na mesma posição do zodíaco quando ocorrem os equinócios, ou seja, os pontos em que a trajetória aparente do Sol cruza o equador celeste não são fixos, mas vão mudando lentamente com o tempo.
Hiparco não interpretou nem poderia ter interpretado esse fenômeno
como devido a uma precessão do eixo da Terra. Para Hiparco, a Terra
não girava, e portanto não possuía pólos nem
eixo de rotação. A esfera das estrelas, sim, é que
girava em torno da Terra, e era ela que possuía um eixo (e pólos,
e um equador). Na época, portanto, o deslocamento dos equinócios
poderia apenas ser interpretado como devido a um deslocamento do eixo da
esfera das estrelas, ou do eixo da esfera que transportava o Sol (mas nunca
do eixo da Terra). Além disso, nada permitia concluir, na época,
que esses eixos deveriam fazer um movimento semelhante ao de um pião3.
3 Segundo Dreyer, Ptolomeu e Hiparco consideraram a precessão simplesmente como uma lenta rotação da esfera das estrelas “fixas” (DREYER, A history of astronomy from Thales to Kepler, p. 205). |
Pode parecer que esse é um detalhe sem importância, mas em outro ponto do livro o autor utilizou essa interpretação errônea para justificar a escolha de Copérnico por um modelo heliocêntrico:
Em alguns pontos do livro, uma descrição correta é acompanhada por figuras errôneas. Um exemplo é a figura 3.4 (GLEISER, A dança do universo, p. 129), destinada a ilustrar a lei das áreas, de Kepler.
A legenda diz: "Se os números representam a posição
do planeta em intervalos de tempo iguais, as áreas dos segmentos
triangulares são iguais". Se isso fosse verdade, cada um dos 10
segmentos teria 10% da área total. No entanto, a figura está
errada, pois as áreas dos segmentos triangulares são claramente
desiguais
e não iguais, como deveriam ser4.
4 Os modos de se comparar as áreas são: fazendo-se uma ampliação da figura, recortando-se os triângulos e pesando-se em uma balança de precisão; ou fazendo-se uma aproximação geométrica. |
Pode-se determinar aproximadamente as áreas dos segmentos, e
o resultado que se obtém, a partir da figura do livro, é
o seguinte:
|
O segmento correspondente ao trecho 4-5 é o maior de todos, sendo aproximadamente o triplo do menor, que é o 1-2. É claro que pode ser difícil desenhar áreas exatamente iguais, mas diferenças tão gritantes, que podem ser detectadas a um simples olhar, são inaceitáveis.
Mais adiante, o livro se refere à teoria das marés de Galileo, que acreditava que as marés ocorreriam basicamente porque a combinação dos dois movimentos principais da Terra (em torno do Sol e em torno do seu eixo) produziriam oscilações das águas. Ao descrever (de modo não muito correto) a teoria de Galileo sobre as marés, o livro critica essa teoria da seguinte forma:
III – Luz e cores
Embora não houvesse nenhuma relação com o tema do livro, o autor procurou descrever os trabalhos de Newton sobre a luz. Essa descrição possui vários erros científicos. Por exemplo:
Quanto às "sete cores do arco-íris", deve-se fazer vários comentários. Em primeiro lugar, as "sete cores" foram inventadas por Newton, a partir de uma analogia musical (ver TOPPER 1990). A distinção entre azul e índigo (anil), totalmente forçada e artificial, foi o que permitiu a introdução desse número sete. Ninguém, antes, havia interpretado o arco-íris como composto por sete cores. Na verdade, ninguém vê a diferença entre azul e índigo; os estudantes são doutrinados sobre as sete cores, e, mesmo sem conseguirem "ver" o índigo, aceitam passivamente a teoria que lhes é ministrada.
Por fim, devemos indicar que a idéia de que a luz do Sol pode ser decomposta por um prisma em suas cores é uma idéia de Newton, e não de seus antecessores, pois pressupõe, obviamente, que a luz do Sol é composta (não se pode decompor algo que não é composto). Antes, supunha-se que a luz branca era transformada pelo prisma em um conjunto de cores (ver, por exemplo, SILVA & MARTINS 1996).
Toda discussão das "sete cores" do arco-íris deveria ser acompanhada de uma explicação adequada, que apontasse que existem na verdade infinitas cores diferentes no espectro da luz do Sol, e que os nomes "vermelho", "amarelo", etc., se referem na verdade a grupos de cores semelhantes, delimitados arbitrariamente. Newton percebeu claramente isso, e esse é um aspecto importante de nosso conhecimento físico a respeito da luz. Ficar afirmando que "Ele [Newton] concluiu que a luz branca nada mais era além do produto da superposição das sete cores do arco-íris" (GLEISER, A dança do universo, p. 171), além de um erro histórico, é uma contribuição negativa ao ensino da física. Da mesma forma, a definição que aparece no Glossário do livro é incorreta:
A parte do livro que se refere à teoria de cores de Newton está repleta de outros equívocos, como por exemplo:
Em segundo lugar, Newton jamais mediu (nem tentou medir) as velocidades de propagação das diferentes cores através do prisma. Por mais "delicados e acurados" que fossem os seus experimentos, isso teria sido impossível, na época. Medidas da velocidade da luz em diferentes meios materiais apenas foram realizadas, como é bem sabido, em 1850, por Armand Fizeau e Léon Foucault, quase dois séculos depois dos experimentos de Newton (ver WHITTAKER, A history of the theories of aether and electricity, vol. 1, p. 127). O modelo corpuscular da luz estabelecia uma relação entre refração e velocidade, mas tratava-se de teoria, e não de medidas experimentais.
Em terceiro lugar, consideremos a relação entre velocidade
e refração descrita no texto. Suponhamos a luz branca incidindo
obliquamente sobre a superfície de um prisma, formando certo ângulo
(chamado ‘ângulo de incidência’) com a normal à superfície.
Dentro do prisma, a extremidade vermelha do espectro sofrerá um
menor desvio, e a extremidade violeta sofrerá um maior desvio. A
luz que sofre o maior desvio (violeta) é aquela que se ficará
mais próxima da normal, dentro do vidro. Como o ângulo entre
o raio refratado e a normal é chamado de ângulo de refração,
o resultado é que o ângulo de refração da luz
vermelha é maior, e o ângulo de refração da
luz violeta é menor. De acordo com o modelo corpuscular, a luz violeta
(que sofre o maior desvio e tem o menor ângulo de refração)
seria a mais lenta. O livro, no entanto, afirma que "quanto mais devagar
uma determinada cor se propagava através do prisma, maior seu ângulo
de refração". É exatamente o contrário do que
ocorreria, de acordo com Newton. De acordo com o modelo ondulatório
da luz, é verdade, a cor que se propaga mais devagar terá
um maior ângulo de refração. Mas não era isso
o que Newton pensava5.
5 À primeira vista, pode parecer curioso que um assunto tão simples quanto a teoria das cores de Newton possa se prestar a tantas confusões. Na verdade, essa teoria está longe de ser simples, como qualquer pessoa pode se convencer realizado um estudo mais aprofundado sobre a mesma (SILVA, 1996). |
Diga-se, de passagem, que o próprio conceito de refração apresentado no Glossário do livro apresenta problemas:
Vamos discutir um pouco mais esse ponto, pois ele nos permite indicar uma questão didática geral importante. A afirmação científica correta, de acordo com nosso conhecimento, seria: "Quando a luz incide obliquamente em relação à superfície de separação entre dois meios transparentes isotrópicos de diferentes índices de refração, ela sofre um desvio". Temos, por um lado, o efeito (a luz sofre um desvio ao passar de um meio transparente para outro) e, por outro lado, as condições (a incidência deve ser oblíqua; os meios devem ter diferentes índices de refração; a afirmação se aplica a meios isotrópicos). Didaticamente, essas condições podem ser esclarecidas dando-se contra-exemplos:
a) se a luz incidir perpendicularmente à superfície de separação, ela não muda de direção;
b) se os dois meios tiverem mesmo índice de refração, a luz não muda de direção;
c) se um dos meios for opticamente anisotrópico, como um cristal de calcita, a luz pode não mudar de direção mesmo com incidência oblíqua, e pode mudar de direção mesmo com incidência normal.
Uma boa obra didática de física procura escolher definições e descrições cuidadosamente, deixando claras as condições em que um fenômeno ocorre e quando não ocorre. Pelo contrário, o livro que estamos discutindo muitas vezes ignora as condições, fazendo por isso afirmações falsas, sob o ponto de vista científico. Se os estudantes já têm dificuldade em perceber a importâncias das condições quando elas são explicitadas, imaginem o que ocorre se elas forem omitidas...
Mais adiante, o livro se refere à espectroscopia. A descrição da estrutura de um espectroscópio, assim como a figura que acompanha o texto, estão erradas. O texto afirma:
Curiosamente, a figura não mostra prisma nenhum, e sim um pretenso esquema de um espectroscópio com uma rede de difração. Mas esse não é o grande problema. O espectroscópio mostrado na figura, com duas fendas paralelas, está errado. Os espectroscópios possuem normalmente duas fendas, mas elas não ficam lado a lado (como mostrado no livro) e sim uma depois da outra, de tal modo a produzir um feixe estreito de luz (sistema colimador). Isso faz com que a intensidade luminosa seja muito baixa, e por isso a luz não é projetada sobre um anteparo ("uma folha de papelão", conforme o livro), e sim observada olhando-se através do espectroscópio em direção à fonte luminosa (em geral, com uma luneta). A rede de difração está representada também de um modo errado (é quadrada e não redonda, e os riscos deveriam ser paralelos ao comprimento das fendas). A rede de difração (nome correto, na figura) aparece no texto com o nome de "retículo". A palavra "retículo" é utilizada na física no sentido de uma rede bi- ou tridimensional (por exemplo, retículo cristalino), mas não é sinônimo de rede de difração. O texto e a figura parecem ter sido feitos por alguém que nunca viu um espectroscópio.
Continuando a falar sobre espectros, o autor afirma:
IV – Mecânica clássica
Ao descrever a dinâmica planetária, o livro também introduz algumas noções problemáticas:
Algumas explicações sobre força centrípeta estão também erradas, como por exemplo:
Ao descrever a descoberta da lei da gravitação, o livro afirma:
O texto ficaria correto se eliminasse, simplesmente, o trecho que diz "para manter os planetas em órbita", ou se o substituísse por "para explicar as leis do movimento planetário". O que foi realmente relevante foi o uso da chamada terceira lei de Kepler. O que os pesquisadores em questão mostraram foi que, se as órbitas dos planetas fossem consideradas como aproximadamente circulares, então a terceira lei de Kepler exigia que as acelerações dos planetas fossem inversamente proporcionais ao quadrado de suas distâncias ao Sol.
Ao introduzir certos conceitos elementares, o livro se enreda em dificuldades que teriam sido fáceis de evitar. Por exemplo:
Em primeiro lugar, o que é "quantidade bruta"? Isso não existe, em física. Antigamente se falava em "matéria bruta" e "matéria animada", mas acredito que não é isso que o autor esteja querendo dizer.
Há, na física atual, vários conceitos de massa (massa inercial, massa gravitacional ativa, massa gravitacional passiva), cada um com uma definição diferente, e nenhuma delas correspondendo à definição do livro. Sob o ponto de vista histórico, Newton introduziu o conceito de massa falando sobre a quantidade de matéria de um corpo, mas é claro que o conceito newtoniano de massa (inercial) que utilizamos não deve ser definido assim – deve ser introduzido a partir do conceito de resistência à aceleração.
Por outro lado, ao comparar massa com peso, o autor se afunda em um lamaçal, confundindo aquilo que chamamos de campo gravitacional com a aceleração da gravidade. Utilizando linguagem atual, podemos dizer que a Terra produz à sua volta um campo gravitacional, o que significa que um corpo de prova com massa gravitacional passiva m, colocado próximo à Terra, estará submetido a uma força atrativa radial F, que é o peso do corpo de prova, de módulo igual a GMm/r², onde M é a massa da Terra e r a distância ao centro da Terra (supondo a Terra quase esférica). A razão entre esse peso F e a massa gravitacional passiva do corpo de prova é g=GM/r², que é o valor do campo gravitacional naquele ponto, o qual independe das características do corpo de prova.
A aceleração sofrida por um corpo de prova em queda livre no campo gravitacional será a=F/m, onde m é a massa inercial do corpo. Portanto, a=(gm)/m= g(m/m). Como a razão (m/m) entre massa gravitacional passiva e massa inercial é a mesma para todos os corpos, a aceleração da gravidade é igual para todos os corpos.
Se utilizarmos (como se costuma fazer) a mesma unidade para medidas de massa inercial e massa gravitacional passiva, a razão (m/m) será igual ao número puro 1. Nesse caso, teremos a=g, e a grandeza campo gravitacional terá a mesma unidade e valor que a aceleração da gravidade. No entanto, são dois conceitos distintos. Um corpo só cairá com a aceleração a se nada o impedir de cair. No entanto, mesmo se estiver impedido de cair, o corpo estará submetido ao campo gravitacional g, responsável pelo seu peso F=mg.
Portanto, não tem sentido a afirmação do livro: "Mesmo que você não esteja caindo, a atração gravitacional da Terra está permanentemente acelerando-o para baixo". Seria correto dizer "Mesmo que você não esteja caindo, a atração gravitacional da Terra está permanentemente puxando-o para baixo", mas esse puxão não é uma aceleração. Deve-se deixar claro, ao ensinar coisas como essa, que F=ma não é uma definição de força, e que pode existir força sem existir aceleração. Forças podem produzir acelerações e/ou tensões. Quando existe uma força resultante não nula, existe uma aceleração, mas no caso de uma pessoa de pé, no chão, a força resultante é nula, e não existe aceleração.
O conceito de quantidade de movimento introduzido pelo livro também é um pouco problemático:
Ao tentar explicar o conceito de inércia, o autor apresenta um exemplo inadequado:
Ao introduzir a segunda lei de Newton, o autor faz uma ressalva incorreta:
A explicação do livro sobre a lei de ação e reação também tem um problema:
V – Gravitação
A atração gravitacional de dois corpos pontuais obedece à lei do inverso do quadrado da distância. Para dois corpos extensos, isto é, com dimensões não desprezíveis comparadas às suas distâncias, a aplicação da lei da gravitação não é direta, mas reduz-se ao caso de pontos materiais quando os corpos possuem simetria esférica. No livro "A dança do universo", encontramos o seguinte comentário:
6 As palavras em negrito nesta e em outras citações do livro foram enfatizadas pelo autor do presente artigo. |
e em uma nota explicativa, adiciona:
Ao estabelecer uma relação entre o movimento dos projéteis e o dos satélites, o livro dá o conhecido exemplo fictício de um canhão colocado no alto de uma montanha, que atirasse projéteis com velocidades crescentes, os quais atingiriam distâncias cada vez maiores e, para certa velocidade, entrariam em órbita:
Como se pode ver por esses exemplos, se uma pessoa fosse aprender mecânica a partir das explicações contidas neste livro, ficaria com uma visão completamente distorcida da física newtoniana.
Ao retornar à questão cosmogônica, após um longo desvio, o livro introduz uma concepção estranha:
VI – Termodinâmica e teoria cinética dos gases
Ao penetrar na termodinâmica, o autor perpetra alguns enganos:
Pouco depois, ao descrever uma máquina térmica simples, encontramos o seguinte trecho:
Ao introduzir a segunda lei da termodinâmica, o livro também é bastante infeliz:
No caso de um sistema isolado, a entropia não pode diminuir (pode crescer ou permanecer constante). Isso, sim, é que a segunda lei da termodinâmica afirma. Dois parágrafos abaixo, o autor reduz o erro:
A teoria cinética dos gases apresentada no livro também é vítima de alguns enganos:
7 Para cada gás, a temperatura é proporcional ao quadrado da velocidade das partículas, mas se compararmos diferentes gases, as suas temperaturas não serão proporcionais ao quadrado de suas velocidades. |
É interessante comentar que o tipo de erro cometido pelo autor é bastante comum em estudantes de segundo grau e alguns alunos a nível universitário: trata-se de uma confusão entre uma relação quantitativa de proporcionalidade (representada por uma equação do tipo x=ky) e uma relação semi-quantitativa, correspondente a qualquer função monótona crescente. Podemos dizer, por exemplo, que a altura de uma árvore aumenta com a sua idade (uma relação monótona crescente), mas não podemos dizer que essa altura é proporcional à idade da árvore (que seria uma relação quantitativa de proporcionalidade). No entanto, estudantes sem muito treino confundem as duas coisas, e passam inconscientemente de um tipo de relação para o outro. No caso apontado acima, pode-se dizer que há uma relação monótona crescente entre a velocidade das moléculas e a pressão do gás, mas não se pode dizer que essas duas grandezas são proporcionais.
VII – Eletromagnetismo
Ao penetrar no eletromagnetismo, além de grande número de informações históricas errôneas, que não serão descritas aqui, aparecem algumas falhas conceituais. Por exemplo, ao falar sobre a teoria dos dois fluidos elétricos, o livro afirma:
Ao falar sobre linhas de força, o autor tenta dar um exemplo do dia-a-dia, mas que é bastante infeliz:
Ao descrever a teoria eletromagnética da luz, encontra-se a seguinte interpretação:
VIII – Considerações finais
Até aqui, todos os conceitos físicos equivocados que apontamos pertenciam à chamada "física clássica". Os melhores estudantes dos dois primeiros anos dos cursos universitários, que estudem física geral e experimental, devem ser capazes de compreender a maior parte dessas falhas.
O livro aqui discutido poderia até mesmo ser utilizado didaticamente, como objeto de discussão com os alunos (especialmente alunos de graduação em Física), a fim de que eles tentassem localizar erros no livro. Isso poderia ser bastante útil – assim como uma prática sobre a qual já li, de utilizar-se os piores jornais como material de estudo em aulas de português, solicitando que os alunos encontrem lapsos gramaticais, de ortografia, de pontuação, etc. Pode-se aprender bastante com a discussão de erros.
Teria sido possível evitar os problemas que apontei acima? Creio que sim. Em primeiro lugar, há muitos pontos abordados no livro que poderiam ter sido simplesmente omitidos, pois não possuem relação com o tema central abordado. Isso permitira dispor de mais espaço para esclarecer melhor os conceitos mais importantes. Por outro lado, não há nada terrivelmente difícil envolvido nos pontos falhos que foram indicados. Com um pequeno esforço, teria sido possível corrigir o texto.
Há um ponto curioso, que quero ainda assinalar. Conversei com alguns colegas (físicos) que tinham lido o presente livro, e nenhum deles havia percebido o grande número de erros que ele contém. Pode ser que minha leitura da obra seja excessivamente crítica, mas não posso evitá-lo (trata-se do mesmo estilo crítico que inspirou o saudoso professor Pierre Lucie a escrever a série de livros Física com Martins e eu). Acredito na importância da seriedade e do rigor, não apenas na pesquisa, mas também no ensino e na divulgação científica.
Referências bibliográficas