MARTINS, Roberto de Andrade. Como distorcer a física: considerações sobre um exemplo de divulgação científica. 1 –
Física clássica. Caderno Catarinense de Ensino de Física 15 (3): 243-64, 1998.

http://www.ghtc.usp.br/ram-r66.htm
 
COMO DISTORCER A FÍSICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE UM EXEMPLO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA.

1 – FÍSICA CLÁSSICA

Roberto de Andrade Martins

Resumo

Este artigo discute a dificuldade de apresentar-se conceitos físicos corretos em obras de divulgação científica. Apresenta-se como exemplo uma leitura crítica do livro A dança do universo: dos mitos de criação ao big-bang, de Marcelo Gleiser, analisando-se problemas conceituais da abordagem empregada naquela obra. Mostra-se a existência de grande número de erros, provenientes de uma utilização descuidada de imagens e comparações, erros esses que poderiam ter sido evitados. O presente artigo discute a parte daquela obra referente à física clássica, apenas. A parte referente à física moderna será discutida em um próximo artigo.
 

I – Introdução

Os autores de livros de divulgação científica são muitas vezes mal vistos pela comunidade científica. As obras de divulgação costumam ser acusadas de distorcer a ciência, na tentativa de apresentar algo compreensível a um público mais amplo. Muitas vezes tais distorções ocorrem, realmente (e infelizmente). Por outro lado, deve o público ser privado de contato com o desenvolvimento científico? É claro que não. A cultura científica deve ser disseminada, e boas obras de divulgação podem atrair novos talentos para a pesquisa. Atualmente, a comunidade está cobrando uma retribuição social dos cientistas, e a divulgação científica poderia ser uma das formas pelas quais o público receberia um retorno do investimento realizado com o dinheiro dos impostos.

O problema é encontrar quem possa fazer bons trabalhos de divulgação científica. O ideal (difícil de atingir) é unir uma competência científica à capacidade de escrever de modo simples e interessante, mas não errôneo. Há alguns bons exemplos, na área da Física, como George Gamow (para citar um autor já falecido).

Há pouco tempo foi publicada uma obra que, infelizmente, serve como um contra-exemplo de boa divulgação científica: A dança do universo, de Marcelo Gleiser. Uma análise detalhada desse trabalho pode ser útil, pois o livro conta com um esquema de divulgação tão eficiente que, apesar de se tratar de um autor sem nenhuma experiência prévia, a obra já se tornou, desde o lançamento, um "best seller". Certamente muitos alunos (e professores) lerão esse livro e, sem estarem advertidos, poderão deixar de perceber o enorme número de falhas que ele contém.

A escolha deste trabalho específico para análise não significa que eu o considere a pior obra já escrita, nem que tenha algum problema pessoal com o autor (que não conheço). Alguns meses atrás, fui convidado a participar de uma discussão sobre o livro, e isso me obrigou a lê-lo. Fiquei bastante chocado com o que encontrei na obra, e resolvi aproveitar o esforço gasto na leitura redigindo algumas observações1. Creio que o tipo de análise crítica aqui apresentada pode ser útil aos estudantes e educadores, e servir também de alerta a autores e editoras, para que procurem ser mais cuidadosos em trabalhos desse tipo.
 
1 Este artigo vai apresentar uma discussão crítica baseada na segunda edição do livro. Para poder acompanhar a análise aqui apresentada, é conveniente ter à mão o próprio livro. A primeira edição continha alguns outros problemas adicionais, que foram corrigidos e que não serão apontados aqui. No entanto, quem dispuser apenas da primeira edição, poderá encontrar as falhas aqui discutidas, nas mesmas páginas indicadas.

A obra A dança do universo: dos mitos de criação ao big-bang seria, de acordo com seu título, um livro sobre a história das idéias cosmogônicas (ou seja, sobre a origem e desenvolvimento do universo). Em parte, de fato, o autor procurou seguir esse objetivo, mas acabou por incluir na obra a história da astronomia (nem sempre relevante sob o ponto de vista das cosmogonias) e de toda a física. Este é um primeiro problema da obra: tentar cobrir uma quantidade enorme de assuntos, dedicando a cada um deles apenas umas poucas páginas. É claro que muitos aspectos da evolução da física estão associados ao desenvolvimento das teorias cosmogônicas, mas é possível e desejável fazer uma seleção daquilo que se apresenta em um livro de divulgação. O livro trata da termodinâmica, mas não discute os interessantes aspectos termodinâmicos da cosmologia; enfoca o eletromagnetismo, mas não consegue relacioná-lo com o tema central do livro. Trata longamente das idéias de Kepler e Newton, mas não descreve o único trabalho cosmogônico importante dessa época – o de Descartes.

Pela abordagem adotada – essencialmente histórica – a obra pode e deve ser analisada sob o ponto de vista da fidelidade historiográfica. Há uma multidão de erros nas descrições históricas apresentadas, que não podem ser descritos aqui, sob pena de exceder os limites de tamanho permitidos a este artigo. Em outro local, espero poder apresentar uma discussão desses aspectos. Neste trabalho, no entanto, vou me concentrar na análise do conteúdo científico da obra, ou seja, vou discutir a física apresentada no livro, comentando o mínimo possível de aspectos históricos.

II – Astronomia antiga

Uma boa parte do livro não precisa ser discutida aqui: quase toda a parte inicial, em que não é apresentado nenhum conhecimento científico moderno. No entanto, mesmo na parte inicial, é necessário chamar a atenção para alguns pontos que contêm equívocos científicos.

Quando tenta descrever as idéias dos pitagóricos sobre o sistema solar, o autor apresenta uma descrição dos fenômenos astronômicos observáveis da Terra:

Para um observador situado na Terra, o Sol e os planetas parecem ter dois tipos de movimento completamente diferentes; um deles é o movimento diário em torno da Terra, que também é exibido pelas estrelas. Mas, em contraste com as estrelas, que permanecem fixas em suas posições relativas, o Sol e os planetas exibem outro tipo de movimento, girando com períodos diferentes em torno do zodíaco, o cinturão dividido nas doze constelações familiares dos horóscopos. Enquanto o Sol leva aproximadamente 365 dias para completar uma revolução, no caso dos planetas os períodos variam de 88 dias para Mercúrio até 29 anos para Saturno. (GLEISER, A dança do universo, pp. 58-9) Em primeiro lugar, devemos notar que nenhum astro gira "em torno" do zodíaco. "Girar em torno do zodíaco" significaria estar fora dele, e os planetas estão mais próximos do que as estrelas. Suponho que isso seja apenas uma falha de redação. Há, no entanto, um erro grave no que se refere àquilo que é visto por um observador situado na Terra. Para tal observador, o período do movimento de Mercúrio em relação ao zodíaco não é de 88 dias, e sim de um ano, como o Sol. Desde a Antigüidade, observou-se que Mercúrio e Vênus nunca se afastavam muito (angularmente) do Sol, e que portanto completavam o seu ciclo celeste principal ao mesmo tempo que este. É preciso não confundir aquilo que aceitamos atualmente, baseados no modelo geocêntrico (o período do movimento orbital de Mercúrio em torno do Sol) com aquilo que um observador situado na Terra pode medir. O tipo de confusão exemplificado aqui é bastante comum em professores e alunos: trata-se de uma dificuldade em distinguir os fenômenos da explicação, e também de confundir as teorias atuais com fatos. Saber a diferença entre aquilo que realmente se pode observar, a partir da Terra, e aquilo que um modelo astronômico ensina, é um ponto fundamental para se poder compreender as dificuldades da astronomia. As boas obras de história da astronomia, como a de Dreyer (A history of astronomy from Thales to Kepler), assim como muitos livros introdutórios de astronomia observacional, apresentam claramente essa distinção.

Um erro semelhante pode ser encontrado quando o autor se refere à precessão dos equinócios:

Hiparco foi muito mais para a astronomia do que o pioneiro no uso de epicliclos2 na descrição dos movimentos celestes. (...) descobriu o fenômeno conhecido como precessão dos equinócios, o fato de o eixo de rotação da Terra girar lentamente, de modo semelhante a um pião desequilibrado. (GLEISER, A dança do universo, p. 83)
Ao invés de “epicliclos”, o termo correto seria “epiciclos”.

A precessão dos equinócios não é isso. Os equinócios (de primavera e de outono) são os dias nos quais a duração do dia e da noite são iguais (daí o seu nome). Esses dias ocorrem quando, em seu movimento aparente em torno da Terra, o Sol atravessa o equador celeste. Atribui-se a Hiparco a descoberta de que o Sol não está sempre na mesma posição do zodíaco quando ocorrem os equinócios, ou seja, os pontos em que a trajetória aparente do Sol cruza o equador celeste não são fixos, mas vão mudando lentamente com o tempo.

Hiparco não interpretou nem poderia ter interpretado esse fenômeno como devido a uma precessão do eixo da Terra. Para Hiparco, a Terra não girava, e portanto não possuía pólos nem eixo de rotação. A esfera das estrelas, sim, é que girava em torno da Terra, e era ela que possuía um eixo (e pólos, e um equador). Na época, portanto, o deslocamento dos equinócios poderia apenas ser interpretado como devido a um deslocamento do eixo da esfera das estrelas, ou do eixo da esfera que transportava o Sol (mas nunca do eixo da Terra). Além disso, nada permitia concluir, na época, que esses eixos deveriam fazer um movimento semelhante ao de um pião3.
 
Segundo Dreyer, Ptolomeu e Hiparco consideraram a precessão simplesmente como uma lenta rotação da esfera das estrelas “fixas” (DREYER, A history of astronomy from Thales to Kepler, p. 205).

Pode parecer que esse é um detalhe sem importância, mas em outro ponto do livro o autor utilizou essa interpretação errônea para justificar a escolha de Copérnico por um modelo heliocêntrico:

Possivelmente, a noção de que a Terra oscila em torno de seu eixo de rotação como um pião desequilibrado deve ter influenciado a decisão de Copérnico de fazer com que a Terra se movesse como um todo em torno do Sol. (GLEISER, A dança do universo, p. 101) Aqui temos não apenas um erro histórico (a decisão de Copérnico certamente não foi influenciada por essa idéia), mas uma falha completa de interpretação. Somente faz sentido falar sobre o "eixo de rotação da Terra" se a Terra tiver rotação – e isso não era aceito, até a época de Copérnico. Por outro lado, mesmo se uma pessoa admitisse que a Terra gira em torno de um eixo, e que esse eixo é dotado de um movimento de precessão (para explicar o movimento dos equinócios), isso nada teria a ver com o movimento da Terra em torno do Sol. Seria perfeitamente possível admitir-se um movimento de rotação da Terra supondo, apesar disso, que ela estivesse no centro do Universo. Perceber as semelhanças e diferenças, as relações e ausência de relações entre as idéias, é um aspecto muito importante do pensamento científico.

Em alguns pontos do livro, uma descrição correta é acompanhada por figuras errôneas. Um exemplo é a figura 3.4 (GLEISER, A dança do universo, p. 129), destinada a ilustrar a lei das áreas, de Kepler.

A legenda diz: "Se os números representam a posição do planeta em intervalos de tempo iguais, as áreas dos segmentos triangulares são iguais". Se isso fosse verdade, cada um dos 10 segmentos teria 10% da área total. No entanto, a figura está errada, pois as áreas dos segmentos triangulares são claramente desiguais e não iguais, como deveriam ser4.
 
Os modos de se comparar as áreas são: fazendo-se uma ampliação da figura, recortando-se os triângulos e pesando-se em uma balança de precisão; ou fazendo-se uma aproximação geométrica.

Pode-se determinar aproximadamente as áreas dos segmentos, e o resultado que se obtém, a partir da figura do livro, é o seguinte:
 
segmento:
área:
segmento:
área:
1-2
5,2%
6-7
14,5%
2-3
7,8%
7-8
11,2%
3-4
9,2%
8-9
11,5%
4-5
15,1%
9-10
6,9%
5-6
12,5%
10-1
6,1%

O segmento correspondente ao trecho 4-5 é o maior de todos, sendo aproximadamente o triplo do menor, que é o 1-2. É claro que pode ser difícil desenhar áreas exatamente iguais, mas diferenças tão gritantes, que podem ser detectadas a um simples olhar, são inaceitáveis.

Mais adiante, o livro se refere à teoria das marés de Galileo, que acreditava que as marés ocorreriam basicamente porque a combinação dos dois movimentos principais da Terra (em torno do Sol e em torno do seu eixo) produziriam oscilações das águas. Ao descrever (de modo não muito correto) a teoria de Galileo sobre as marés, o livro critica essa teoria da seguinte forma:

A maior dificuldade do argumento de Galileu é que ele diferencia o movimento da terra firme do movimento da água, como se ambos obedecessem a diferentes leis físicas. (GLEISER, A dança do universo, p. 151) Supostamente, essa seria a dificuldade da teoria de Galileo, sob o ponto de vista atual. Trata-se de uma análise científica incorreta. O problema principal é que a teoria de Galileo viola seu próprio princípio de relatividade dos movimentos (para uma descrição e discussão mais adequadas da teoria das marés de Galileo, ver MARTINS 1994).

III – Luz e cores

Embora não houvesse nenhuma relação com o tema do livro, o autor procurou descrever os trabalhos de Newton sobre a luz. Essa descrição possui vários erros científicos. Por exemplo:

Newton realizou experimentos com prismas (um cristal em forma de pirâmide), lentes e espelhos, na tentativa de desvendar as propriedades físicas da luz. Ele sabia que, quando a luz do Sol passa por um prisma, ela se decompõe nas sete cores do arco-íris: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, azul-marinho [sic] e violeta. (GLEISER, A dança do universo, 170-1) Bem, em primeiro lugar, os prismas não são normalmente feitos de cristal (os de Newton eram de vidro), e nunca possuem forma de pirâmide (possuem forma prismática, é claro!). Aqui, como em outros pontos, o autor foi vítima de uma tentativa infeliz de utilizar coisas familiares ao público: as pirâmides "esotéricas" de cristal estão em moda, então vamos utilizar isso como exemplo...

Quanto às "sete cores do arco-íris", deve-se fazer vários comentários. Em primeiro lugar, as "sete cores" foram inventadas por Newton, a partir de uma analogia musical (ver TOPPER 1990). A distinção entre azul e índigo (anil), totalmente forçada e artificial, foi o que permitiu a introdução desse número sete. Ninguém, antes, havia interpretado o arco-íris como composto por sete cores. Na verdade, ninguém a diferença entre azul e índigo; os estudantes são doutrinados sobre as sete cores, e, mesmo sem conseguirem "ver" o índigo, aceitam passivamente a teoria que lhes é ministrada.

Por fim, devemos indicar que a idéia de que a luz do Sol pode ser decomposta por um prisma em suas cores é uma idéia de Newton, e não de seus antecessores, pois pressupõe, obviamente, que a luz do Sol é composta (não se pode decompor algo que não é composto). Antes, supunha-se que a luz branca era transformada pelo prisma em um conjunto de cores (ver, por exemplo, SILVA & MARTINS 1996).

Toda discussão das "sete cores" do arco-íris deveria ser acompanhada de uma explicação adequada, que apontasse que existem na verdade infinitas cores diferentes no espectro da luz do Sol, e que os nomes "vermelho", "amarelo", etc., se referem na verdade a grupos de cores semelhantes, delimitados arbitrariamente. Newton percebeu claramente isso, e esse é um aspecto importante de nosso conhecimento físico a respeito da luz. Ficar afirmando que "Ele [Newton] concluiu que a luz branca nada mais era além do produto da superposição das sete cores do arco-íris" (GLEISER, A dança do universo, p. 171), além de um erro histórico, é uma contribuição negativa ao ensino da física. Da mesma forma, a definição que aparece no Glossário do livro é incorreta:

ESPECTRO: O espectro de uma fonte de radiação eletromagnética é composto de radiação de várias freqüências, separadas por algum instrumento. Por exemplo, o espectro da luz visível é composto pelas sete cores do arco-íris. (GLEISER, A dança do universo, p. 402) Errado. O espectro da luz visível é composto por infinitas cores diferentes, que se convencionou dividir (a partir de uma proposta de Newton) em sete grupos de cores.

A parte do livro que se refere à teoria de cores de Newton está repleta de outros equívocos, como por exemplo:

A partir de seus delicados e acurados experimentos, Newton descobriu que a razão pela qual diferentes cores são refratadas a diferentes ângulos é o fato de cada cor ter uma velocidade diferente ao atravessar o prisma, que funcionava como uma espécie de "filtro" de cores; quanto mais devagar uma determinada cor se propagava através do prisma, maior seu ângulo de refração. (GLEISER, A dança do universo, p. 171) Em primeiro lugar, devemos indicar que o autor utiliza uma analogia errônea. Filtro é um dispositivo que deixa passar algumas coisas e impede a passagem de outras. Um polarizador ou uma placa de vidro colorido, por exemplo, podem ser comparados a um filtro. O prisma não atua assim, ele não funciona impedindo a passagem de uma parte da luz e deixando passar outra parte.

Em segundo lugar, Newton jamais mediu (nem tentou medir) as velocidades de propagação das diferentes cores através do prisma. Por mais "delicados e acurados" que fossem os seus experimentos, isso teria sido impossível, na época. Medidas da velocidade da luz em diferentes meios materiais apenas foram realizadas, como é bem sabido, em 1850, por Armand Fizeau e Léon Foucault, quase dois séculos depois dos experimentos de Newton (ver WHITTAKER, A history of the theories of aether and electricity, vol. 1, p. 127). O modelo corpuscular da luz estabelecia uma relação entre refração e velocidade, mas tratava-se de teoria, e não de medidas experimentais.

Em terceiro lugar, consideremos a relação entre velocidade e refração descrita no texto. Suponhamos a luz branca incidindo obliquamente sobre a superfície de um prisma, formando certo ângulo (chamado ‘ângulo de incidência’) com a normal à superfície. Dentro do prisma, a extremidade vermelha do espectro sofrerá um menor desvio, e a extremidade violeta sofrerá um maior desvio. A luz que sofre o maior desvio (violeta) é aquela que se ficará mais próxima da normal, dentro do vidro. Como o ângulo entre o raio refratado e a normal é chamado de ângulo de refração, o resultado é que o ângulo de refração da luz vermelha é maior, e o ângulo de refração da luz violeta é menor. De acordo com o modelo corpuscular, a luz violeta (que sofre o maior desvio e tem o menor ângulo de refração) seria a mais lenta. O livro, no entanto, afirma que "quanto mais devagar uma determinada cor se propagava através do prisma, maior seu ângulo de refração". É exatamente o contrário do que ocorreria, de acordo com Newton. De acordo com o modelo ondulatório da luz, é verdade, a cor que se propaga mais devagar terá um maior ângulo de refração. Mas não era isso o que Newton pensava5.
 
À primeira vista, pode parecer curioso que um assunto tão simples quanto a teoria das cores de Newton possa se prestar a tantas confusões. Na verdade, essa teoria está longe de ser simples, como qualquer pessoa pode se convencer realizado um estudo mais aprofundado sobre a mesma (SILVA, 1996).

Diga-se, de passagem, que o próprio conceito de refração apresentado no Glossário do livro apresenta problemas:

REFRAÇÃO: Deflexão sofrida por um raio de luz ao propagar-se de um meio (por exemplo, ar) para outro (por exemplo, água). (GLEISER, A dança do universo, p. 406) Nem sempre que um raio de luz se propaga de um meio para outro ele sofre desvio: no caso de substâncias isotrópicas, ele só pode sofrer desvio se incidir obliquamente em relação à superfície de separação entre os dois meios. E nem sempre que a luz passa de um meio para outro (mesmo obliquamente) ela sofre deflexão: somente sofre desvio se os dois meios tiverem índices de refração diferentes. O significado etimológico de "refração" está próximo ao conceito que aparece no Glossário; mas, por tratar-se de um glossário de uma obra científica atual, deveria ter sido apresentado um conceito compatível com a física que aceitamos, o que não foi o caso.

Vamos discutir um pouco mais esse ponto, pois ele nos permite indicar uma questão didática geral importante. A afirmação científica correta, de acordo com nosso conhecimento, seria: "Quando a luz incide obliquamente em relação à superfície de separação entre dois meios transparentes isotrópicos de diferentes índices de refração, ela sofre um desvio". Temos, por um lado, o efeito (a luz sofre um desvio ao passar de um meio transparente para outro) e, por outro lado, as condições (a incidência deve ser oblíqua; os meios devem ter diferentes índices de refração; a afirmação se aplica a meios isotrópicos). Didaticamente, essas condições podem ser esclarecidas dando-se contra-exemplos:

a) se a luz incidir perpendicularmente à superfície de separação, ela não muda de direção;

b) se os dois meios tiverem mesmo índice de refração, a luz não muda de direção;

c) se um dos meios for opticamente anisotrópico, como um cristal de calcita, a luz pode não mudar de direção mesmo com incidência oblíqua, e pode mudar de direção mesmo com incidência normal.

Uma boa obra didática de física procura escolher definições e descrições cuidadosamente, deixando claras as condições em que um fenômeno ocorre e quando não ocorre. Pelo contrário, o livro que estamos discutindo muitas vezes ignora as condições, fazendo por isso afirmações falsas, sob o ponto de vista científico. Se os estudantes já têm dificuldade em perceber a importâncias das condições quando elas são explicitadas, imaginem o que ocorre se elas forem omitidas...

Mais adiante, o livro se refere à espectroscopia. A descrição da estrutura de um espectroscópio, assim como a figura que acompanha o texto, estão erradas. O texto afirma:

Um espectroscópio bem simples pode ser construído colocando-se a fenda em frente ao prisma (como na figura 6.1), seguida de uma folha de papelão onde a luz é projetada. (GLEISER, A dança do universo, p. 207)

Curiosamente, a figura não mostra prisma nenhum, e sim um pretenso esquema de um espectroscópio com uma rede de difração. Mas esse não é o grande problema. O espectroscópio mostrado na figura, com duas fendas paralelas, está errado. Os espectroscópios possuem normalmente duas fendas, mas elas não ficam lado a lado (como mostrado no livro) e sim uma depois da outra, de tal modo a produzir um feixe estreito de luz (sistema colimador). Isso faz com que a intensidade luminosa seja muito baixa, e por isso a luz não é projetada sobre um anteparo ("uma folha de papelão", conforme o livro), e sim observada olhando-se através do espectroscópio em direção à fonte luminosa (em geral, com uma luneta). A rede de difração está representada também de um modo errado (é quadrada e não redonda, e os riscos deveriam ser paralelos ao comprimento das fendas). A rede de difração (nome correto, na figura) aparece no texto com o nome de "retículo". A palavra "retículo" é utilizada na física no sentido de uma rede bi- ou tridimensional (por exemplo, retículo cristalino), mas não é sinônimo de rede de difração. O texto e a figura parecem ter sido feitos por alguém que nunca viu um espectroscópio.

Continuando a falar sobre espectros, o autor afirma:

Ao examinar o espectro do mais intenso violeta até o mais intenso vermelho, Fraunhofer descobriu que as linhas escuras representavam cores que estavam ausentes. O espectro solar não era completo! (GLEISER, A dança do universo, p. 208) O autor provavelmente queria dizer: "do violeta mais extremo até o vermelho mais extremo". Os extremos não são as partes mais intensas do espectro – pelo contrário, são as mais fracas. O centro do espectro solar é o sua parte de maior intensidade. Por outro lado, o resto da primeira frase está mal construído. Seria melhor escrever simplesmente: "Fraunhofer descobriu que havia linhas escuras. Essas linhas escuras indicam que certas cores estavam ausentes."

IV – Mecânica clássica

Ao descrever a dinâmica planetária, o livro também introduz algumas noções problemáticas:

Para estudar o movimento circular, Newton imaginou o movimento de uma pedra amarrada a uma corda. Se uma pessoa faz com que a pedra gire sobre sua cabeça, o movimento circular da pedra é o resultado de um equilíbrio entre a força centrífuga e a tensão na corda. (GLEISER, A dança do universo, p. 173) Pelo contrário, de acordo com a física newtoniana, um movimento circular não pode ser o resultado de um equilíbrio. Se existe um movimento circular, é justamente porque não há equilíbrio, e sim uma força resultante que produz uma aceleração. Se houvesse equilíbrio, o movimento da pedra seria retilíneo e uniforme. Mais adiante, o livro introduz a idéia correta; mas colocar uma idéia incorreta e não explicar o motivo pelo qual é incorreta é um procedimento anti-educativo – especialmente neste caso, pois pode reforçar uma idéia popular errônea a respeito do que ocorre no movimento circular. O conceito "intuitivo" de que a força da corda e a força centrífuga se equilibram e cancelam deve ser discutido com estudantes, e deve-se mostrar que é inadequado.

Algumas explicações sobre força centrípeta estão também erradas, como por exemplo:

A força centrípeta faz com que um corpo "entre em órbita", desviando-o do movimento inercial em linha reta que ele teria na sua ausência. (GLEISER, A dança do universo, p. 173) A força centrípeta não é o que faz um corpo entrar em órbita – caso contrário, só precisaríamos da força da gravidade (força centrípeta) para colocar nossos satélites em órbita. É necessário dispor de alguma força que não seja central para poder fornecer ao corpo um momento angular, sem o qual ele não poderá entrar em órbita.

Ao descrever a descoberta da lei da gravitação, o livro afirma:

Halley foi até Cambridge para pedir a Newton sua opinião sobre um problema de física. Em colaboração com Hooke e Christopher Wren (...) Halley mostrou que, para manter os planetas em órbita, o Sol deve exercer uma força que varia de modo proporcional ao inverso do quadrado de sua distância ao planeta. Eles chegaram a esse resultado usando o trabalho de Huygens sobre o movimento circular e a terceira lei de Kepler, exatamente como Newton havia feito vinte anos antes. (GLEISER, A dança do universo, p. 177) Há um erro histórico: Halley não estava fazendo nenhum trabalho "em colaboração" com Hooke e Wren (os três, independentemente um do outro, haviam concluído que a força era inversamente proporcional ao quadrado da distância). Mas o problema principal desta citação é a segunda frase, que afirma: "para manter os planetas em órbita, o Sol deve exercer uma força que varia de modo proporcional ao inverso do quadrado de sua distância ao planeta". Isso é fisicamente incorreto. O Sol poderia manter planetas em órbita ao seu redor se a força fosse inversamente proporcional à distância, ou se a força fosse diretamente proporcional à distância, ou com muitas outras leis de força. A única condição física para que um certo tipo de força possa manter algum tipo de órbita em torno de um centro de forças é que a força seja atrativa (centrípeta).

O texto ficaria correto se eliminasse, simplesmente, o trecho que diz "para manter os planetas em órbita", ou se o substituísse por "para explicar as leis do movimento planetário". O que foi realmente relevante foi o uso da chamada terceira lei de Kepler. O que os pesquisadores em questão mostraram foi que, se as órbitas dos planetas fossem consideradas como aproximadamente circulares, então a terceira lei de Kepler exigia que as acelerações dos planetas fossem inversamente proporcionais ao quadrado de suas distâncias ao Sol.

Ao introduzir certos conceitos elementares, o livro se enreda em dificuldades que teriam sido fáceis de evitar. Por exemplo:

A massa de um corpo é o que usualmente (e erradamente) chamamos de seu peso, uma medida da quantidade de matéria bruta de um objeto. Peso, por outro lado, é a força com que um corpo é atraído gravitacionalmente. (GLEISER, A dança do universo, p. 179) e, em uma nota explicativa, o autor acrescenta: (17) Mesmo que você não esteja caindo, a atração gravitacional da Terra está permanentemente acelerando-o para baixo. Para que você se convença de que isso é verdade, imagine o que aconteceria se o chão sob seus pés fosse subitamente removido! (GLEISER, A dança do universo, p. 416) e o Glossário ao final do livro acrescenta a seguinte definição: "MASSA: Uma medida da quantidade bruta de matéria em um objeto." (GLEISER, A dança do universo, p. 404)

Em primeiro lugar, o que é "quantidade bruta"? Isso não existe, em física. Antigamente se falava em "matéria bruta" e "matéria animada", mas acredito que não é isso que o autor esteja querendo dizer.

Há, na física atual, vários conceitos de massa (massa inercial, massa gravitacional ativa, massa gravitacional passiva), cada um com uma definição diferente, e nenhuma delas correspondendo à definição do livro. Sob o ponto de vista histórico, Newton introduziu o conceito de massa falando sobre a quantidade de matéria de um corpo, mas é claro que o conceito newtoniano de massa (inercial) que utilizamos não deve ser definido assim – deve ser introduzido a partir do conceito de resistência à aceleração.

Por outro lado, ao comparar massa com peso, o autor se afunda em um lamaçal, confundindo aquilo que chamamos de campo gravitacional com a aceleração da gravidade. Utilizando linguagem atual, podemos dizer que a Terra produz à sua volta um campo gravitacional, o que significa que um corpo de prova com massa gravitacional passiva m, colocado próximo à Terra, estará submetido a uma força atrativa radial F, que é o peso do corpo de prova, de módulo igual a GMm/r², onde M é a massa da Terra e r a distância ao centro da Terra (supondo a Terra quase esférica). A razão entre esse peso F e a massa gravitacional passiva do corpo de prova é g=GM/r², que é o valor do campo gravitacional naquele ponto, o qual independe das características do corpo de prova.

A aceleração sofrida por um corpo de prova em queda livre no campo gravitacional será a=F/m, onde m é a massa inercial do corpo. Portanto, a=(gm)/m= g(m/m). Como a razão (m/m) entre massa gravitacional passiva e massa inercial é a mesma para todos os corpos, a aceleração da gravidade é igual para todos os corpos.

Se utilizarmos (como se costuma fazer) a mesma unidade para medidas de massa inercial e massa gravitacional passiva, a razão (m/m) será igual ao número puro 1. Nesse caso, teremos a=g, e a grandeza campo gravitacional terá a mesma unidade e valor que a aceleração da gravidade. No entanto, são dois conceitos distintos. Um corpo só cairá com a aceleração a se nada o impedir de cair. No entanto, mesmo se estiver impedido de cair, o corpo estará submetido ao campo gravitacional g, responsável pelo seu peso F=mg.

Portanto, não tem sentido a afirmação do livro: "Mesmo que você não esteja caindo, a atração gravitacional da Terra está permanentemente acelerando-o para baixo". Seria correto dizer "Mesmo que você não esteja caindo, a atração gravitacional da Terra está permanentemente puxando-o para baixo", mas esse puxão não é uma aceleração. Deve-se deixar claro, ao ensinar coisas como essa, que F=ma não é uma definição de força, e que pode existir força sem existir aceleração. Forças podem produzir acelerações e/ou tensões. Quando existe uma força resultante não nula, existe uma aceleração, mas no caso de uma pessoa de pé, no chão, a força resultante é nula, e não existe aceleração.

O conceito de quantidade de movimento introduzido pelo livro também é um pouco problemático:

Baseando-se nos trabalhos de Galileu e Descartes, Newton definiu a quantidade de movimento de um objeto como sendo o produto de sua massa por sua velocidade. Portanto, um fusca e um caminhão viajando a trinta quilômetros por hora têm quantidades de movimento muito diferentes devido à grande diferença entre suas massas. Se você tivesse que colidir com um dos dois, certamente você escolheria o fusca. (GLEISER, A dança do universo, p. 179) A última frase dá a entender que o efeito destrutivo de uma colisão depende da quantidade de movimento dos corpos que colidem. Se fosse assim, e se tivéssemos dois carros, um deles com o dobro da velocidade de outro mas a metade da massa, eles produziriam iguais efeitos ao colidir. Na verdade, o de massa menor irá produzir um efeito destrutivo maior (o dobro). O que determina o poder destrutivo de uma colisão, se outros aspectos forem iguais, é a energia cinética e não a quantidade de movimento do corpo. Entre colidir contra um fusca de 500 kg a 100 km/h e um caminhão de 5.000 kg a 10 km/h, escolha o caminhão!

Ao tentar explicar o conceito de inércia, o autor apresenta um exemplo inadequado:

Outro conceito importante é o conceito de inércia, que pode ser definida como a reação de um objeto a qualquer mudança em sua quantidade de movimento. Mais uma vez, você conhece bem esse conceito a partir de sua experiência cotidiana: mover uma pedra grande é muito mais difícil do que mover uma pedra pequena (...) (GLEISER, A dança do universo, p. 180) O exemplo utilizado foi muito infeliz. Mover uma pedra a uma grande distância é mais difícil do que mover a mesma pedra a uma pequena distância, mas a inércia é a mesma. Mover um corpo sobre uma superfície lubrificada é mais fácil do que mover o mesmo corpo sobre uma superfície com grande atrito, mas a inércia é a mesma. A dificuldade em mover uma pedra, em situações cotidianas, depende de muitos fatores, e não permite captar o conceito de inércia. Um exemplo um pouco melhor seria: acelerar um carro com muitos passageiros é mais difícil do que acelerar o mesmo carro apenas com o motorista.

Ao introduzir a segunda lei de Newton, o autor faz uma ressalva incorreta:

Se a massa do corpo não muda enquanto a força é impressa sobre ele (um exemplo contrário seria um balde furado, cheio de água, sendo empurrado para a frente), então essa lei [2ª. lei de Newton] pode ser expressa pela famosa equação F=ma. (GLEISER, A dança do universo, p. 182) Ou seja, o autor parece acreditar que a segunda lei de Newton, sob a forma F=ma, não pode ser aplicada ao balde furado. No entanto, no caso do balde furado com água, a equação também pode ser aplicada. A única diferença, neste caso, é que a massa é variável, mas sabendo-se a massa em cada instante, a equação servirá para calcular a aceleração em cada instante. A equação não vale em outros casos (por exemplo, um balde que está sendo acelerado sob a chuva, e que está recebendo uma quantidade significativa de água em seu interior). Qualquer livro de Mecânica (por exemplo, o velho texto do Symon) esclarece isso.

A explicação do livro sobre a lei de ação e reação também tem um problema:

Você pode experienciar essa lei vividamente chutando uma parede de concreto. (GLEISER, A dança do universo, p. 182) Um chute em uma parede de concreto não permite concluir que as forças de ação e reação sejam iguais (em módulo) e contrárias (em sentido). A terceira lei de Newton é uma lei quantitativa, que só pode ser testada através de medidas ou comparações quantitativas. A única coisa que alguém pode vivenciar chutando (com força) uma parede de concreto é a dor no seu pé. Um bom exemplo da terceira lei de Newton é que, prendendo-se sobre um barquinho de madeira um ímã e um pedaço de ferro, o barquinho não se move.

V – Gravitação

A atração gravitacional de dois corpos pontuais obedece à lei do inverso do quadrado da distância. Para dois corpos extensos, isto é, com dimensões não desprezíveis comparadas às suas distâncias, a aplicação da lei da gravitação não é direta, mas reduz-se ao caso de pontos materiais quando os corpos possuem simetria esférica. No livro "A dança do universo", encontramos o seguinte comentário:

Newton conclui o livro I com uma discussão do problema de uma partícula sendo atraída gravitacionalmente por um corpo esférico grande, como, por exemplo, uma maçã sendo atraída pela Terra. Ele prova que o problema pode ser resolvido considerando-se o corpo esférico como uma partícula "pontual" de mesma massa, ou seja6, que, ao tratar o problema de dois corpos atraindo-se, as dimensões de cada corpo são irrelevantes: o que importa é a distância entre seus centros e a massa de cada corpo. (GLEISER, A dança do universo, p. 183)
As palavras em negrito nesta e em outras citações do livro foram enfatizadas pelo autor do presente artigo.

e em uma nota explicativa, adiciona:

Claro, essa aproximação só faz sentido se os dois corpos estiverem separados espacialmente. (nota 18, p. 416) O "ou seja" e tudo o que vem depois (incluindo a nota) estão errados. No caso colocado no início do parágrafo (uma partícula atraída gravitacionalmente por um corpo esférico grande), o resultado obtido por Newton é válido de forma rigorosa, a qualquer distância (desde que a partícula esteja fora do corpo esférico grande). Trata-se de uma prova matemática belíssima e que conduz a um resultado inesperado. O que vem depois do "ou seja" não tem nada a ver com isso. Quando a distância entre dois corpos é muito maior do que suas dimensões, esses dois corpos podem ser considerados como pontos materiais por definição de pontos materiais, e suas dimensões são irrelevantes. Não é preciso utilizar a dedução de Newton que citamos acima para provar isso. O "ou seja" e o que vem depois estão errados, pois não se trata de uma conseqüência, nem é um outro modo de dizer o que foi dito antes. A nota (18) está errada, pois no caso colocado no ínicio do parágrafo (uma partícula atraída gravitacionalmente por um corpo esférico grande) não se trata de uma aproximação, mas de um resultado exato, válido qualquer que seja a distância entre seus centros, mesmo se os dois corpos estiverem encostados um ao outro (desde que a partícula esteja fora).

Ao estabelecer uma relação entre o movimento dos projéteis e o dos satélites, o livro dá o conhecido exemplo fictício de um canhão colocado no alto de uma montanha, que atirasse projéteis com velocidades crescentes, os quais atingiriam distâncias cada vez maiores e, para certa velocidade, entrariam em órbita:

Entretanto, podemos imaginar que, se aumentarmos a potência do canhão, no final o projétil terá uma velocidade horizontal suficiente para simplesmente "continuar caindo"; embora o projétil esteja sendo atraído continuamente para baixo pela força gravitacional (...) ele nunca vai bater no chão; ou seja, o projétil entrou em órbita, virando um satélite da Terra! (GLEISER, A dança do universo, p. 184) Não é a "potência" do canhão (no sentido físico: razão entre trabalho e tempo) que deve ser aumentada. O autor poderia utilizar a palavra não técnica "poder". Mas isso é apenas um detalhe. Se formos aumentando o poder do canhão, "no final" o projétil se afastará indefinidamente da Terra, não voltando mais para ela. Para que o projétil fique em uma órbita circular, como no desenho apresentado no livro (fig. 5.2), é necessário que ele seja atirado com uma certa velocidade exata (nem mais, nem menos), que pode ser calculada.

Como se pode ver por esses exemplos, se uma pessoa fosse aprender mecânica a partir das explicações contidas neste livro, ficaria com uma visão completamente distorcida da física newtoniana.

Ao retornar à questão cosmogônica, após um longo desvio, o livro introduz uma concepção estranha:

Assim como as estrelas se agrupam sob sua atração gravitacional para formar nebulosas, grupos de nebulosas também formam aglomerados, que Kant chamou de "universos-ilhas." (GLEISER, A dança do universo, p. 201) Sob o ponto de vista histórico, Kant chamou cada galáxia (e não os grupos de nebulosas) de "universos-ilha". Nem no tempo de Kant nem atualmente se acreditou (ou acredita) que as estrelas se formem primeiro e depois se juntem para formar galáxias: acredita-se que primeiro se formam grandes nuvens de gás, dentro das quais as estrelas se formam e permanecem. A idéia errada reaparece na página 206 do livro.

VI – Termodinâmica e teoria cinética dos gases

Ao penetrar na termodinâmica, o autor perpetra alguns enganos:

Sabemos que o calor sempre flui de objetos quentes para objetos frios. (GLEISER, A dança do universo, p. 213) Errado. O calor pode fluir de objetos frios para objetos quentes, como ocorre em geladeiras. A frase ficaria correta se fosse: "O calor flui espontaneamente de objetos quentes para objetos frios".

Pouco depois, ao descrever uma máquina térmica simples, encontramos o seguinte trecho:

Agora vamos aquecer o cilindro com uma lamparina. À medida que a chama aquece o cilindro, o ar no seu interior também se aquece e começa a expandir-se, movendo o pistão para cima. Esse fenômeno simples é uma manifestação da primeira lei da termodinâmica, que diz que a energia total num sistema isolado (...) deve ser constante. (GLEISER, A dança do universo, p. 216-7) A frase enfatizada está errada. Quando o gás se aquece ele aumenta de pressão e tende a se dilatar, mas isso não é uma manifestação da primeira lei da termodinâmica. É uma consequência da estrutura do gás. Certas substâncias se dilatam quando se aquecem, outras se contraem (por exemplo, borracha), e isso depende do tipo de material considerado. Esse comportamento não tem nada a ver com a primeira lei da termodinâmica.

Ao introduzir a segunda lei da termodinâmica, o livro também é bastante infeliz:

O calor é energia em forma desorganizada; fazer com que o calor gere trabalho mecânico organizado não é nada fácil. Como conseqüência, na evolução de qualquer sistema, o estado final será necessariamente mais desorganizado (terá maior entropia) do que o estado inicial. Esse resultado fundamental é conhecido como segunda lei da termodinâmica. (GLEISER, A dança do universo, p. 219) A segunda frase, que está enfatizada, não é uma conseqüência da anterior, e está errada. A entropia de um sistema pode diminuir. Quando, através de um processo reversível, fornecemos ou tiramos calor de um corpo, ele sofre uma variação de entropia DS=DQ/T que é negativa quando o calor sai do objeto.

No caso de um sistema isolado, a entropia não pode diminuir (pode crescer ou permanecer constante). Isso, sim, é que a segunda lei da termodinâmica afirma. Dois parágrafos abaixo, o autor reduz o erro:

Em outras palavras, a segunda lei afirma que, em qualquer sistema físico isolado, a entropia sempre cresce. "Isolado", aqui, refere-se a um sistema que não pode trocar energia com o ambiente externo. (GLEISER, A dança do universo, p. 219) A condição de se tratar de um sistema isolado foi introduzida, mas a lei permaneceu incorreta: a entropia pode permanecer constante. Por outro lado, o conceito de sistema físico isolado, introduzido logo depois, também é incorreto. Um sistema isolado é aquele em que não pode entrar nem sair matéria nem energia.

A teoria cinética dos gases apresentada no livro também é vítima de alguns enganos:

Waterson obteve dois resultados cruciais: a) a temperatura de um gás é proporcional ao quadrado da velocidade média de suas moléculas; b) a pressão de um gás é proporcional ao produto da densidade de moléculas (quanto maior a densidade do gás, maior a pressão) por sua velocidade média (quanto maior a velocidade média das moléculas, maior a pressão). (GLEISER, A dança do universo, p. 223) Se colocarmos esse parágrafo sob forma de equações, teríamos: T=kv2 e P=k’rv. A primeira está correta7, mas a segunda, correspondente ao ítem (b), está errada. A pressão não é proporcional à velocidade média, e sim ao quadrado da velocidade média das moléculas (mais precisamente, à média dos quadrados das velocidades), ou seja, proporcional à energia cinética do gás por unidade de volume.
 
Para cada gás, a temperatura é proporcional ao quadrado da velocidade das partículas, mas se compararmos diferentes gases, as suas temperaturas não serão proporcionais ao quadrado de suas velocidades.

É interessante comentar que o tipo de erro cometido pelo autor é bastante comum em estudantes de segundo grau e alguns alunos a nível universitário: trata-se de uma confusão entre uma relação quantitativa de proporcionalidade (representada por uma equação do tipo x=ky) e uma relação semi-quantitativa, correspondente a qualquer função monótona crescente. Podemos dizer, por exemplo, que a altura de uma árvore aumenta com a sua idade (uma relação monótona crescente), mas não podemos dizer que essa altura é proporcional à idade da árvore (que seria uma relação quantitativa de proporcionalidade). No entanto, estudantes sem muito treino confundem as duas coisas, e passam inconscientemente de um tipo de relação para o outro. No caso apontado acima, pode-se dizer que há uma relação monótona crescente entre a velocidade das moléculas e a pressão do gás, mas não se pode dizer que essas duas grandezas são proporcionais.

VII – Eletromagnetismo

Ao penetrar no eletromagnetismo, além de grande número de informações históricas errôneas, que não serão descritas aqui, aparecem algumas falhas conceituais. Por exemplo, ao falar sobre a teoria dos dois fluidos elétricos, o livro afirma:

Na verdade, como se sabia que objetos eletrificados podiam tanto atrair-se como repelir-se mutuamente, era comum pensar-se na eletricidade como sendo composta de dois fluidos, um responsável pela atração e o outro pela repulsão. (GLEISER, A dança do universo, p. 228) Não é nada disso. Os dois fluidos eram a eletricidade positiva e a negativa (ver WHITTAKER, A history of the theories of aether and electricity, vol. 1, pp. 57-8). Cada tipo produz tanto atração (pelo fluido oposto) quanto repulsão (pelo fluido de mesmo tipo).

Ao falar sobre linhas de força, o autor tenta dar um exemplo do dia-a-dia, mas que é bastante infeliz:

Se você tem dois daqueles magnetos usados para pendurar recados nas portas de refrigeradores, você pode sentir suas "linhas de força" forçando um contra o outro em ângulos diferentes. (GLEISER, A dança do universo, p. 236) Ninguém pode sentir as linhas de força assim. Aproximando um ímã de outro, em diferentes direções, apenas é possível sentir atrações, repulsões e torques. Não se pode sentir linhas de força. Para se "ver" linhas de força, o melhor é utilizar-se o velho e eficiente recurso didático de espalhar ferro em pó sobre um papel e colocar um ímã sob o papel. Outra possibilidade é ir colocando uma bússola em diferentes pontos perto de um ímã (que precisa ser forte e de tamanho maior do que a bússola), e ir marcando a direção indicada pela agulha magnética em cada ponto.

Ao descrever a teoria eletromagnética da luz, encontra-se a seguinte interpretação:

A luz emitida por nebulosas distantes era vista como radiação eletromagnética produzida por cargas elétricas em movimento. Por sua vez, o movimento das cargas podia ser interpretado como uma medida da temperatura do meio em que elas estavam imersas, conforme explicava a teoria cinética de Maxwell e Boltzmann. (GLEISER, A dança do universo, pp. 247-8) Não era e não é bem isso o que a teoria afirma. Cargas elétricas aceleradas emitem radiação e, na teoria clássica, ondas eletromagnéticas periódicas deveriam ser emitidas por cargas elétricas em movimento oscilatório regular (periódico). As moléculas dos gases aquecidos não realizam movimento oscilatório regular, e por isso não se podia associar a emissão de luz com o movimento térmico da teoria cinética dos gases. Por isso, imaginava-se que os espectros luminosos emitidos ou absorvidos por gases deveriam estar associados a vibrações internas aos átomos, e não ao movimento térmico das moléculas.

VIII – Considerações finais

Até aqui, todos os conceitos físicos equivocados que apontamos pertenciam à chamada "física clássica". Os melhores estudantes dos dois primeiros anos dos cursos universitários, que estudem física geral e experimental, devem ser capazes de compreender a maior parte dessas falhas.

O livro aqui discutido poderia até mesmo ser utilizado didaticamente, como objeto de discussão com os alunos (especialmente alunos de graduação em Física), a fim de que eles tentassem localizar erros no livro. Isso poderia ser bastante útil – assim como uma prática sobre a qual já li, de utilizar-se os piores jornais como material de estudo em aulas de português, solicitando que os alunos encontrem lapsos gramaticais, de ortografia, de pontuação, etc. Pode-se aprender bastante com a discussão de erros.

Teria sido possível evitar os problemas que apontei acima? Creio que sim. Em primeiro lugar, há muitos pontos abordados no livro que poderiam ter sido simplesmente omitidos, pois não possuem relação com o tema central abordado. Isso permitira dispor de mais espaço para esclarecer melhor os conceitos mais importantes. Por outro lado, não há nada terrivelmente difícil envolvido nos pontos falhos que foram indicados. Com um pequeno esforço, teria sido possível corrigir o texto.

Há um ponto curioso, que quero ainda assinalar. Conversei com alguns colegas (físicos) que tinham lido o presente livro, e nenhum deles havia percebido o grande número de erros que ele contém. Pode ser que minha leitura da obra seja excessivamente crítica, mas não posso evitá-lo (trata-se do mesmo estilo crítico que inspirou o saudoso professor Pierre Lucie a escrever a série de livros Física com Martins e eu). Acredito na importância da seriedade e do rigor, não apenas na pesquisa, mas também no ensino e na divulgação científica.

Referências bibliográficas

  1. DREYER, J. L. E. A history of astronomy from Thales to Kepler. New York: Dover, 1953.
  2. GLEISER, Marcelo. A dança do universo. Dos mitos de criação ao big-bang. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras (Editora Schwarcz), 1997.
  3. LUCIE, Pierre. Física com Martins e eu. Ilustrado por Henfil. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 1970.
  4. MARTINS, Roberto de Andrade. Galileo e a rotação da Terra. Caderno Catarinense de Ensino de Física 11 (3): 196-211, 1994.
  5. SILVA, Cibelle Celestino. A teoria das cores de Newton: um estudo crítico do Livro I do Opticks (dissertação de mestrado). Campinas: Instituto de Física "Gleb Wataghin", 1996.
  6. SILVA, Cibelle Celestino & MARTINS, Roberto de Andrade. A "Nova teoria sobre luz e cores" de Isaac Newton: uma tradução comentada. Revista Brasileira de Ensino de Física 18 (4): 313-27, 1996.
  7. TOPPER, David. Newton on the number of colours in the spectrum. Studies in History and Philosophy of Science 21: 269-79, 1990.
  8. WHITTAKER, Edmund. A history of the theories of aether and electricity. 2 vols. New York: American Institute of Physics, 1987.