Roberto de A. Martins
Rmartins@ifi.unicamp.br
Grupo de História e Teoria da Ciência, Instituto de Física, Unicamp
http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc
As universidades são, no Brasil, os principais centros de pesquisa científica. No entanto, até hoje, as universidades brasileiras ainda não se preocuparam com a preservação sistemática da sua memória científica. Há nas universidades sistemas de arquivos bem desenvolvidos, porém eles estão voltados quase exclusivamente para a preservação e tratamento de documentos administrativos.
Além da documentação administrativa, as universidades e outras instituições semelhantes produzem grande quantidade de documentos associados a suas atividades-fim, a saber: ensino, pesquisa e extensão. Não há mecanismos institucionais para a preservação desses documentos, relativos à memória científica e tecnológica.
No entanto, é indubitável a importância dessa documentação, pois ela tem um papel essencial na pesquisa da história da ciência e da tecnologia, e na avaliação das ações passadas como base para o planejamento futuro.
Recentemente, foi formado uma Comissão Especial nomeada pela Presidência do CNPq (Portaria 116/2003, de 4 de julho de 2003) para propor uma Política Nacional de Preservação da Memória da Ciência e da Tecnologia. O relatório dessa Comissão, que deve servir de base para o estabelecimento das ações governamentais nessa área, deixa clara a necessidade de preservação do patrimônio científico e tecnológico brasileiro, assim conceituado:
A memória da ciência e da tecnologia integra o patrimônio histórico nacional. Mesmo sendo distinta do que é hoje conceituado como patrimônio cultural, mantêm com o mesmo uma vinculação forte e indissolúvel: as atividades científicas e os procedimentos técnicos fazem parte da cultura. Assim, na prática, a política de proteção ao patrimônio histórico e cultural não pode ser rigorosamente dissociada da política de memória da ciência e da tecnologia.
A idéia de patrimônio científico e tecnológico deve compreender o vasto conjunto de bens materiais e simbólicos produzidos ou utilizados ao longo do trajeto da produção e difusão do conhecimento. Acervos de documentos escritos originados de instituições científicas e de ensino, coleções organizadas por estudiosos, registros fonográficos e fotográficos, filmes, obras raras, máquinas e equipamentos, edifícios e instalações, bibliotecas, mapotecas, arquivos pessoais de pesquisadores e professores, parcela substancial da correspondência diplomática, documentos e instrumentos relativos a numerosas atividades militares e registros da produção científica de brasileiros no exterior integram o patrimônio científico e tecnológico brasileiro.
Entre as recomendações da Comissão acima citada, encontramos:
Cada instituição envolvida na produção do conhecimento científico e tecnológico precisa dispor de infra-estrutura adequada e pessoal especializado para a preservação de seus acervos, e desenvolver seus próprios arquivos ou centros de memória. As seguintes instituições, dentre outras, devem ser consideradas como fundamentais na implementação da Política Nacional de Memória da Ciência:
· Universidades e institutos de pesquisa
· Sociedades científicas e sociedades literárias
· Arquivos públicos e particulares
· Órgãos de planejamento e desenvolvimento sócio-econômico
· Institutos históricos e geográficos
· Unidades militares
· Museus, memoriais e centros de documentação e informação
· Instituições de fomento
· Instituições, sociedades e clubes profissionais
· Instituições variadas de ensino, a exemplo dos Liceus de Artes e Ofícios e Escolas Técnicas.
Diante da importância de preservação do patrimônio científico e tecnológico brasileiro, este documento apresenta algumas estratégias que poderiam ser implantadas nas universidades e outros centros de pesquisa.
O objetivo deste trabalho é discutir alguns aspectos da preservação de documentos científicos em instituições universitárias ou semelhantes. O tema é muito amplo, e não é possível discutir todos os seus aspectos aqui. Será abordada a questão relativa à conservação e captação de documentos científicos junto aos pesquisadores, discutindo tanto o caso de documentos convencionais (em papel) quanto eletrônicos (digitais), sugerindo algumas estratégias e limitações. O tratamento arquivístico do material preservado não será discutido aqui. Também não será discutida a preservação de documentação administrativa.
O presente trabalho parte de alguns pressupostos básicos, tais como a importância de preservação das fontes documentais para a pesquisa histórica, e a necessidade de preservar uma parte da documentação científica produzida pelos pesquisadores, estudantes e funcionários nas universidades (mas não tudo). Não serão discutidos temas já explorados em um trabalho anterior, no qual foi apresentada uma visão geral dos tipos de documentos científicos que devem ser preservados nas universidades.
MARTINS, Roberto de Andrade. O sistema de arquivos da universidade e a memória científica. Anais do I Seminário Nacional de Arquivos Universitários. Campinas: UNICAMP, 1992, pp. 27-48. Disponível na Internet: http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/ram-pub.htm |
No exercício das atividades-fim de pesquisa, ensino e extensão, os membros da comunidade universitária (professores, estudantes e funcionários técnicos) produzem grande quantidade de documentos que são gerados, circulam, são conservados ou destruídos por decisão dos próprios produtores, sem qualquer conhecimento ou controle por parte da administração da instituição. Citemos alguns exemplos.
No decorrer de um projeto de pesquisa, um professor elabora projetos, faz solicitações de auxílio à pesquisa, faz levantamentos bibliográficos, realiza anotações de suas leituras, planeja experimentos, coleta dados, redige relatórios, escreve rascunhos de artigos, apresenta comunicações em congressos, elabora relatórios de pesquisa, estabelece correspondência científica com outros pesquisadores, divulga seu trabalho através de palestras, e desenvolve muitas outras atividades que resultam em poucos documentos administrativos, mas muitos documentos de interesse científico. É claro que o resultado final de um trabalho de pesquisa é a publicação de resultados, e esse resultado é conservado nas bibliotecas; mas todos os passos intermediários e todos os documentos relacionados à pesquisa (como projetos, relatórios e intercâmbio de correspondência) são também de grande importância e devem ser preservados. Na prática, os pesquisadores guardam uma parte desses documentos durante algum tempo, depois se desfazem da maior parte deles, ou de todos eles – especialmente quando se aposentam. As universidades não possuem mecanismos institucionais para a preservação desses documentos.
Além disso, os equipamentos, laboratórios, coleções científicas antigas, acervos fotográficos e outros materiais audio-visuais gerados durante o trabalho de pesquisa não recebem um tratamento adequado para sua conservação.
Algo semelhante ocorre com outros tipos de atividades (ensino e extensão), que também geram grande quantidade de documentos que acabam sendo destruídos.
Deve-se também mencionar que existem atividades importantes, nas universidades, que nem sequer chegam a gerar uma documentação que pudesse vir a ser preservada. Podemos mencionar nessa categoria a maior parte das aulas, seminários, reuniões de trabalho, telefonemas, conversas entre orientadores e seus orientados, discussões que levam a importantes decisões científicas, didáticas e administrativas, etc. A maior parte do dia-a-dia dos pesquisadores, professores, alunos e técnicos, que poderia facilmente ser registrada (pelo menos sob o ponto de vista de amostras significativas) só poderá ser inferida muito indiretamente, no futuro, pelos historiadores que se interessem por esses aspectos.
Não é possível nem útil preservar todos os documentos e materiais que todos os pesquisadores produzem. No entanto, é inaceitável a atual situação, de descaso total para com a preservação da documentação científica produzida nas universidades, que faz parte do patrimônio científico e tecnológico brasileiro. Essa situação precisa ser revertida.
Em cada universidade ou instituição de pesquisa, é necessário que várias medidas sejam tomadas:
1. Conscientização da comunidade acadêmica (professores, estudantes e funcionários) sobre a importância da preservação do patrimônio científico e tecnológico brasileiro.
2. Estabelecimento de mecanismos institucionais que permitam a preservação (com descarte criterioso), organização e consulta da documentação científica e tecnológica produzida pela instituição, bem como o registro de ações que, normalmente, não geral documentos.
3. Estímulo à pesquisa e à difusão do patrimônio científico e tecnológico preservado pela instituição.
Sem a conscientização da comunidade, nenhuma portaria ou resolução seria efetiva. Sem o estabelecimento de mecanismos adequados, a conscientização seria insuficiente. E sem o efetivo uso do material preservado para estudos históricos, educacionais e outros, essa preservação seria inútil.
A Comissão Especial acima citada recomenda:
Cada instituição envolvida na produção do conhecimento científico e tecnológico precisa dispor de infra-estrutura adequada e pessoal especializado para a preservação de seus acervos, e desenvolver seus próprios arquivos ou centros de memória.
Cada universidade ou centro de pesquisa tem liberdade de escolher o modo de implantar seu projeto de memória científica e tecnológica. No entanto, é importante esclarecer que há várias dimensões a serem consideradas e por isso é difícil imaginar que algum órgão já existente nas universidades seja adequado para desenvolver todas as tarefas envolvidas. A biblioteca central de uma universidade é um órgão que cuida de publicações, e estas são uma parte do patrimônio científico e tecnológico da instituição. Mas há outros aspectos, como a preservação de documentos inéditos, que não se enquadram nas atribuições de uma biblioteca e sim de um arquivo. Por outro lado, há outros aspectos que não se enquadram nem no âmbito das bibliotecas nem dos arquivos, como a preservação de equipamentos, prédios, laboratórios, instalações. A produção de registros que retratem as atividades não documentadas da vida acadêmica também não é atribuição desses órgãos. E há outras dimensões, como a conscientização da comunidade acadêmica e o estímulo à pesquisa do acervo histórico da instituição, que dificilmente podem ser atribuições de um órgão como a biblioteca central ou o sistema de arquivos da universidade.
Caso o centro de memória não seja criado, é necessário que existam departamentos, grupos de trabalho ou divisões específicas em vários órgãos (especialmente no sistema de bibliotecas e no sistema de arquivos) que executem todas as ações previstas, e isso pode ser inadequado, pelos motivos expostos acima.
O projeto de memória científica e tecnológica de cada instituição, por depender de ações a serem desenvolvidas junto a diversos órgãos, deve ser preferivelmente coordenado por um órgão central, que pode ser um centro de memória científica e tecnológica (como sugerido pela Comissão Especial), ou por uma comissão com representantes de diversos órgãos.
Por motivos já indicados e por outros que serão indicados abaixo, a criação de um centro de memória é desejável, mas não é suficiente. Mesmo no caso da criação de um centro de memória científica e tecnológica, é importante que exista uma comissão com representantes dos diversos órgãos da universidade; e, mesmo se o centro de memória científica e tecnológica for criado, ele precisará interagir com os diversos órgãos, sendo necessário definir se a execução das diversas ações será realizada pelo pessoal vinculado ao centro de memória ou a outros órgãos.
Em cada instituição, uma Comissão de Memória Científica e Tecnológica deverá definir os objetivos e ações a serem desenvolvidos, e acompanhar sua execução – sem, no entanto, executar essas ações. Essa Comissão deverá ser formada por representantes das diversas áreas do conhecimento, por historiadores da ciência e da tecnologia, por representantes do sistema de bibliotecas, do sistema de arquivos e (se for o caso) do sistema de museus da universidade, e outros setores e órgãos da universidade que se julgue conveniente incluir.
A comissão deverá propor normas, metas, estratégias gerais e ações específicas, porém não será responsável pela execução dessas ações, que caberá a grupos de trabalho, equipes especiais dos diversos órgãos, etc.
Caso seja criado um centro de memória científica e tecnológica, tal centro deverá estar representado na Comissão, e poderá proporcionar apoio administrativo aos trabalhos da mesma Comissão. No entanto, o Centro e a Comissão não devem se confundir, nem disputar o controle do projeto de memória da instituição.
Para a execução das ações de preservação do patrimônio científico e tecnológico da instituição, devem existir equipes técnicas de diversas áreas, que devem trabalhar harmoniosamente mas que possuem suas especificidades. Tais equipes deverão incluir, necessariamente:
· Equipe de bibliografia – encarregada da preservação do acervo de livros, periódicos, teses, artigos e outros documentos de natureza bibliográfica
· Equipe de arquivos – encarregada da preservação do acervo de documentos não bibliográficos, em diferentes tipos de suportes, incluindo-se documentos digitais
· Equipe de museologia – encarregada da preservação de equipamentos, laboratórios, instalações e prédios
Todas essas equipes necessitam do apoio de serviços de informática, tais como criação de bases de dados, que podem ser proporcionados por uma equipe auxiliar comum a todas as acima indicadas. Como foi indicado anteriormente, essas equipes podem estar associadas a um centro de memória científica e tecnológica da instituição, ou pertencer a outros órgãos, tais como o sistema de bibliotecas, o sistema de arquivos e o sistema de museus da instituição. No entanto, precisam interagir entre si, e a coordenação geral das várias equipes deve ser unificada.
As equipes técnicas do programa de memória científica e tecnológica de cada instituição precisarão do apoio de profissionais (como bibliotecários, secretários e outros) das várias unidades de pesquisa.
As três equipes acima indicadas, necessárias para a preservação dos vários tipos de acervos produzidos pelos pesquisadores, podem ser complementadas por outras. Um exemplo seria:
· Equipe de documentação suplementar – encarregada de produzir registros da vida acadêmica que não são produzidos em condições normais pela comunidade acadêmica
Tal equipe poderia, por exemplo, encarregar-se da execução de documentação fotográfica dos laboratórios e grupos de pesquisa, execução de entrevistas com pesquisadores, gravação em vídeo de palestras e conferências, e outras atividades que permitam criar registros que retratem aspectos relativamente pouco documentados da vida acadêmica. Ao contrário das outras equipes, cuja preocupação central é coletar, selecionar, preservar e organizar material produzido pelos pesquisadores, esta outra equipe teria como preocupação central produzir material que ajude a preservar a memória científica e tecnológica brasileira.
As equipes técnicas devem criar condições para a preservação e utilização do patrimônio científico e tecnológico da instituição. Além disso, através da criação de bases de dados (preferivelmente disponibilizadas pela Internet), estarão ajudando a divulgar esse patrimônio. No entanto, o trabalho da equipe técnica é inútil se não for acompanhado pela utilização efetiva desse patrimônio, por pesquisadores – tais como historiadores da ciência e cientistas interessados no passado de suas especialidades. Também é importante o treinamento de novos pesquisadores (estudantes de todos os níveis) para o estudo do acervo preservado.
Além disso, é importante difundir esse patrimônio de forma ampla, tanto para o público acadêmico quanto para a população em geral, através de publicações, divulgação pela Internet, palestras, cursos, filmes e outros meios.
O ambiente ideal para o desenvolvimento dessas atividades é um Centro de Memória Científica e Tecnológica da instituição. É claro que, mesmo na ausência de um centro como esse, tais atividades podem ser desenvolvidas de modo difuso, em vários departamentos da instituição. Porém, é evidente que a concentração de esforços em uma unidade específica, que conte com infraestrutura e pessoal técnico especializado para dar apoio a essas atividades, proporcionará melhores resultados.
A preservação da memória científica não deve ser pensada nem como uma ação voltada unicamente para os “grandes cientistas” do passado, nem apenas para a recuperação de documentos antigos. Os documentos dos antigos cientistas também precisam ser preservados, e é natural que exista uma preocupação com a perda que já ocorreu e continua a ocorrer, de documentos dos pesquisadores mais importantes. Mas não se deve pensar apenas nisso. É importante desenvolver uma nova mentalidade, de preservação contínua da memória científica, não apenas pensando nos documentos antigos, no “passado”, mas criando mecanismos de preservação da documentação atual, para o futuro.
De nada adianta uma grande campanha de coleta de documentos antigos com os familiares de antigos pesquisadores já falecidos, se ignoramos a documentação dos professores vivos e ativos. Cada instituição de pesquisa deve ter uma equipe técnica encarregada de preservar e coletar a documentação dos pesquisadores ativos, em diversas fases de suas carreiras.
É preciso dar especial atenção à preservação dos documentos quando os professores e pesquisadores vão se aposentar. Este é um momento especial da vida do cientista em que deve ser dado todo apoio à pessoa, para rever sua carreira e organizar / selecionar sua documentação. É neste momento, ou pouco depois, que o pesquisador se desfaz de grande quantidade de documentos, levando muito material para sua própria residência, tornando a recuperação desse material cada vez mais difícil. É também um momento no qual o cientista naturalmente se volta para o passado, repensando sua vida, e encontra-se com mais tempo disponível (e provavelmente com a atitude adequada) para colaborar com ações destinadas à preservação de suas contribuições científicas. É essencial implantar um sistema de acompanhamento dos pesquisadores, por parte dos responsáveis pela preservação da memória científica das universidades, de tal modo que, em um momento próximo à aposentadoria de cada docente, seja estabelecido um contato com a equipe técnica de preservação, sendo então realizado um trabalho cooperativo para selecionar, organizar e preservar sua documentação.
É claro que não basta preservar a documentação das pessoas quando elas vão se aposentar – pode ser tarde demais, se esperarmos até esse momento. Nos trinta, quarenta ou cinqüenta anos que antecedem a aposentadoria, muito material importante pode ter sido destruído ou extraviado. Ao longo das décadas de trabalho de qualquer pesquisador, ele pode se desfazer indiscriminadamente de documentos de grande importância. É um erro supor que apenas os documentos do final da carreira científica sejam relevantes, ou que o pesquisador saiba preservar aquilo que é mais importante.
Consideremos, por exemplo, a fase durante a qual o pesquisador é um estudante de pós-graduação. Será esse momento desprovido de importância? Certamente não. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos e divulgada na revista American Scientist mostrou que, muitas vezes, as teses de doutorado (e mestrado) estão entre as melhores pesquisas de um cientista. É um resultado inesperado, já que poderíamos imaginar que, à medida que obtém mais experiência, um cientista realiza pesquisas cada vez maiores. No entanto, em algumas áreas (como matemática, física e outras) é comum que os cientistas mais famosos do mundo realizem suas maiores contribuições científicas no início (e não no fim) de suas carreiras. Por um lado, isso se explica pela possibilidade que um estudante de pós-graduação normalmente tem, de se dedicar integralmente à pesquisa durante vários anos, podendo assim realizar um excelente trabalho. Por outro lado, os pesquisadores jovens podem ter idéias inovadoras que não ocorrem aos pesquisadores mais experientes, às vezes excessivamente envolvidos em idéias e projetos antigos.
Mesmo quando o trabalho de tese não é a melhor contribuição científica de um pesquisador, a preservação dos documentos dessa fase pode proporcionar material de pesquisa histórica inestimável. A documentação do estudante de pós-graduação mostra o processo pelo qual ele aprende a fazer pesquisa. Ela pode também conter documentos insubstituíveis para o estudo de seus orientadores, do grupo e da instituição onde estudaram, sob o ponto de vista de um pesquisador em formação. Infelizmente, a documentação científica dos estudantes não é conservada na instituição em que estudam, pois os estudantes são encarados como membros temporários da universidade, que deixam para trás apenas suas teses e notas. Os próprios estudantes não valorizam seus documentos e, por causa de sua mobilidade geográfica inicial (muitas vezes se transferem de uma cidade para outra até encontrar um emprego estável), não costumam preservar essa documentação.
Não é difícil estabelecer estratégias que permitam a preservação dos documentos científicos dos estudantes de pós-graduação. É necessário, em primeiro lugar, desenvolver um trabalho de conscientização dos estudantes e orientadores, mostrando-lhes a importância que esses documentos podem ter. Em segundo lugar, é preciso criar mecanismos de coleta e guarda dessa documentação, de forma temporária, nas próprias instituições em que os estudantes desenvolvem suas pós-graduações, fornecendo aos produtores dos documentos a garantia de que, se for desejo de cada pessoa, essa documentação será depois transferida para outra instituição.
É necessário iniciar a preservação de documentos dos pesquisadores e docentes no início de suas carreiras, proporcionando condições práticas que impeçam a destruição ou dispersão desse material.
Em cada fase da carreira científica, deve-se procurar:
· conscientizar o pesquisador
· ajudá-lo a organizar sua documentação
· preservar uma parte importante de sua documentação
Em cada instituição de pesquisa, a equipe técnica de preservação da memória científica deve desenvolver um conjunto de estratégias, junto aos professores e estudantes (e também junto aos técnicos de pesquisa) para que a preservação da documentação científica gerada seja possível. A equipe técnica de memória científica deve criar rotinas de trabalho que envolvam uma interação com os pesquisadores da instituição, para que isso seja possível. É importante um trabalho direto, pessoal, conversando e colaborando com os cientistas nas diversas etapas de sua carreira acadêmica.
Algumas das etapas importantes são: a obtenção de títulos (pós-graduação); contratação inicial pela instituição; progressão funcional (incluindo concursos de livre-docência e para professor titular); obtenção de resultados importantes na carreira científica (projetos importantes, trabalhos de grande repercussão no país e no exterior, eleição para cargos nacionais e internacionais, etc.); e aposentadoria. Em cada um desses momentos, é desejável que os membros do grupo de trabalho de memória científica entrem em contato pessoal, direto, com os cientistas, para tratar da organização, seleção e preservação de seus documentos científicos. Por ocasião do falecimento dos pesquisadores (depois de um tempo adequado, nem muito curto nem muito longo – da ordem de um semestre), a equipe deve também procurar entrar em contato com os familiares, para coleta de material.
É evidente que há dificuldades práticas a serem consideradas. Não se pode preservar toda a documentação de todas as pessoas; mas, ao mesmo tempo, não se pode prever quem serão os pesquisadores mais importantes, no futuro, e por isso não há como escolher, desde o início da carreira, quais os pesquisadores cuja documentação deve ser preservada. Além disso, deve-se considerar que o historiador da ciência não deseja ter à sua disposição apenas os documentos dos melhores cientistas. Ele precisa ter acesso também a documentos de cientistas fracassados (para poder estudar as causas e conseqüências desses fracassos) e de cientistas médios (para poder estudar por qual motivo não deram uma maior contribuição científica).
Uma possível estratégia é preservar temporariamente a maior parte da documentação da maior parte dos pesquisadores de cada instituição. No caso dos pesquisadores mais importantes, os documentos serão preservados de modo permanente, posteriormente. No caso dos menos importantes, serão feitas seleções mais rigorosas, embora seja importante, como foi indicado acima, conservar uma ampla amostra da documentação sobre os cientistas médios e sobre os grandes fracassos.
A proporção do material a ser preservado depende não apenas
de questões práticas (possibilidade de coletar, armazenar e descrever grandes
acervos documentais), mas também que questões de natureza estatística. Em um
universo com N elementos, uma boa amostra, sob o ponto de vista
estatístico, não pode ter um número muito inferior a elementos.
Por exemplo: para o estudo de uma eleição na qual irão participar cem milhões
de eleitores, uma amostra com
= 10.000 eleitores é
excelente. Uma amostra com 1.000 eleitores é insuficiente para um bom resultado
estatístico. No caso de uma eleição municipal, com 10.000 eleitores, uma
amostra com 100 eleitores é excelente. Note-se que, no primeiro caso, a
porcentagem de eleitores que precisa ser consultada é de apenas 0,01% e, no
segundo caso, é de 1%. Quanto maior o universo a ser pesquisado, menor a
proporção da amostra necessária. Inversamente, se o universo a ser pesquisado é
pequeno, pode ser necessária uma amostra muito grande, sob o ponto de vista
percentual.
Se uma instituição tem, por exemplo, N=10.000
estudantes, uma amostra significativa dos mesmos corresponderia a =100
estudantes (1%). Coletando-se uma grande quantidade de documentos relativos a
uma amostra como essa (com estudantes selecionados de modo a representarem
adequadamente a variedade existente na instituição), pode-se ter uma boa visão
do universo estudantil. Mas suponhamos que queremos estudar os estudantes que
se destacaram no vestibular, e seguir seu desenvolvimento na universidade.
Nesse caso, Estaremos lidando com número muito menores. Podemos nos fixar, por
exemplo, nos 20 estudantes que obtiveram melhores resultados no vestibular, ou
nos 5 melhores estudantes de cada área ou curso. Nesse caso, a melhor amostra
seria a totalidade dos indivíduos, pois não é significativa uma amostra
muito pequena, em casos como esse.
De forma análoga, suponhamos que uma instituição tem N=2.500
professores. Uma amostra significativa dos mesmos teria =50
professores (2%). Uma amostra desse tipo, coletada através de uma seleção
cuidadosa, de modo a representar adequadamente a população dos professores
(quanto a critérios como sexo, idade, área de estudo, etc.) poderá proporcionar
bons resultados se tivermos em mente questões que se aplicam a todos os
professores, de um modo geral. Poderíamos pensar, assim, que a coleta da
documentação de 2% dos professores de uma universidade com essas dimensões
seria suficiente, para uma boa preservação da memória científica.
Porém, se quisermos responder a questões que se referem apenas a um tipo específico de professores, e só dispusermos dessa amostra de 2%, poderemos não ter informações suficientes para o estudo desejado. De fato, suponhamos que o interesse de um historiador seja estudar os grandes projetos de pesquisa da instituição (por exemplo, os que tenham recebido mais de US$100,000.00) e que, no período considerado, houve apenas 20 projetos desse tipo. Pode ser que, dos 2% dos professores cuja documentação foi preservada, nenhum tenha desenvolvido um desses grandes projetos. Além disso, para poder fazer um bom estudo dos 20 grandes projetos, seria desejável dispor da documentação referente à maior parte deles.
Portanto, o critério estatístico de utilizar amostra de
aproximadamente é válido quando se
quer responder a questões relativas ao universo de N elementos como um todo.
Porém, quando se quer responder a questões específicas, é necessário dispor de
amostras específicas, e a amostra de
pode ser inadequada.
É preciso pensar cuidadosamente nos vários tipos de estudos específicos que os
historiadores do futuro possam querer desenvolver (por exemplo, a respeito de
questões de gênero, ou de origem social do pesquisador, ou de seu envolvimento
político, etc.) e preservar especialmente grandes proporções de documentos
relativos a casos especiais e minoritários, para que não se inviabilize o
estudo futuro de questões extremamente significativas.
É conveniente, como já foi indicado acima, procurar preservar temporariamente a maior parte da documentação da maior parte dos pesquisadores da instituição, e só depois (no final da carreira de cada um) fazer um descarte criterioso, quando já se conhecem os principais resultados de sua vida acadêmica.
Será viável esse tipo de estratégia?
A preservação provisória exige dispor de espaço e de mão-de-obra para fazer uma seleção e organização mínima do material. Pode parecer inviável desenvolver esse tipo de ação em uma grande instituição. Façamos então um exercício de planejamento, estimando as necessidades desse tipo de trabalho.
Consideremos uma universidade como a Unicamp, com 2.000 professores e 10.000 pós-graduandos, em números arredondados. Vamos impor, como ponto de partida, um limite prático: a instituição deve dedicar menos do que 1% dos seus recursos para seu projeto de memória científica e tecnológica.
A partir desse critério, pode-se sugerir que pequenas instituições (menos de 100 pessoas), como por exemplo as sociedades científicas (que possuem pequeno número de pessoas integralmente dedicadas à instituição), não teriam condições de desenvolver projetos de memória científica e tecnológica. De fato, em casos como esses, é preferível pensar em projetos coletivos, envolvendo um grupo de instituições semelhantes, do que desenvolver projetos individuais, que seriam inadequados ou sobrecarregariam o pessoal disponível.
Na Unicamp há cerca de 10.000 funcionários. Se calcularmos 1% desse total, teríamos 100 funcionários. Seria esse número suficiente, excessivo ou insuficiente para tal tarefa?
A resposta depende daquilo que se quer fazer, e como se quer fazer. Muitas vezes, na arquivologia, dá-se prioridade a tarefas que demandam enorme tempo e esforço, com baixa produtividade, como a elaboração de descrições pormenorizadas de pequenos acervos (por exemplo, elaboração de inventários detalhados de fundos individuais). É comum que os arquivistas despendam meses (ou até anos) para conseguir organizar a seu contento um acervo de um pesquisador importante, e para descrevê-lo. Ora, se um acervo de documentos produzido (e coletado) por um pesquisador em 30 anos de vida útil exigir o trabalho de um arquivista durante 3 anos, cada instituição precisaria ter um grupo de arquivistas especializados com um número equivalente a 10% de seus pesquisadores. Isso seria absurdo.
A proporção de 1% parece adequada, para todos os fins. Pode-se imaginar que, em uma instituição do porte da Unicamp, a soma de todas as equipes técnicas acima mencionadas (bibliografia, arquivos, museologia, documentação complementar), mais o pessoal filiado ao centro de memória científica da instituição, não exigiria mais do que 100 funcionários.
A atividade de preservação de documentação dos pesquisadores é, dentre as acima citadas, a que certamente exige maior investimento de tempo. Podemos ter uma idéia sobre o que pode ser feito, quanto a esse objetivo específico, fazendo uma estimativa bastante limitada, levando em conta apenas o número de professores da instituição (2.000, no caso da Unicamp). Se calcularmos 1% desse total, teríamos um número de 20 pessoas. Vamos pensar, então, o que poderia ser feito nessa universidade, contando com uma equipe técnica de apenas 20 profissionais dedicados à preservação da documentação científica da instituição.
Consideremos que a metade do tempo desse grupo seja dedicada a tarefas internas e que a metade do tempo seja dedicada ao trabalho direto com os pesquisadores, distribuído de forma aproximadamente igual entre contato com professores e contato com os pós-graduandos. A equipe de 20 profissionais, trabalhando 250 dias úteis por ano, disporia de um tempo total de 2.500 dias úteis de trabalho direto com os pesquisadores, por ano. A cada docente da instituição caberia, em média, um tempo de 2,5 horas por ano, ou de 10 horas a cada 4 anos. Cada grupo de 5 estudantes poderia receber atenção durante um tempo correspondente a esse.
Pode parecer pouco, mas não é. Se, ao longo das várias décadas de vida profissional, cada pesquisador receber conscientização, estímulo, motivação e apoio técnico para a preservação e organização de sua documentação, os resultados serão enormes. Os professores poderiam receber não apenas instruções técnicas elementares (como o modo de acondicionar documentos, evitar o uso de clipes e grampos metálicos, etc.) mas também sugestões sobre modos simples e úteis de organizar seus documentos. Através desses contatos, o grupo de preservação da memória científica já poderia coletar informações sobre a documentação que está sendo acumulada e obter uma realimentação permanente sobre a atitude dos pesquisadores a respeito da política de preservação da memória científica.
É importante frisar que o contato pessoal, direto, do grupo de preservação da memória científica com cada pesquisador, não pode ser substituído por normas oficiais publicadas, nem pela distribuição de folhetos, nem pelo envio de e-mails, nem por palestras destinadas a todos os docentes. São necessárias visitas agendadas de membros do grupo de preservação da memória científica a cada departamento, a cada laboratório, a cada grupo de pesquisa, a cada professor, para conversas diretas, frente a frente. O tempo disponível pode ser mais bem aproveitado se houver uma combinação de reuniões individuais com reuniões em pequenos grupos (por exemplo, com todos os professores, estudantes de pós-graduação e técnicos especializados do mesmo laboratório ou grupo de pesquisa). Mas nunca com grandes grupos, nem desprezando o contato individual.
Por ocasião das reuniões, os membros do grupo de preservação da memória científica devem tomar um conhecimento global dos tipos de documentos que são produzidos, de seu estado físico, de sua organização, e conversar com os pesquisadores sobre isso. Serão momentos para desenvolver a conscientização da preservação, para proporcionar orientação aos pesquisadores sobre o modo de organizar seus documentos, e de estimulá-los a seguir algumas normas simples.
É razoável e condizente com a prática arquivística considerar três etapas de preservação da documentação científica, com características distintas.
Na primeira fase, os documentos permanecem com o próprio pesquisador (ou grupo) que os produziu, porém os pesquisadores são conscientizados e treinados para selecionar, preservar e organizar sua documentação.
Na segunda fase, devem ser estruturados arquivos intermediários que já não ficarão mais nas salas do próprio pesquisador, mas sim em arquivos pertencentes ao departamento, instituto/faculdade ou grupo de pesquisa a que eles pertencem. Serão deslocados para esse arquivo intermediário os documentos que já não estejam sendo utilizados freqüentemente pelos pesquisadores, excetuando-se documentos que pareçam, a cada um, ser de caráter mais pessoal ou confidencial, e que o professor pode preferir conservar em sua sala. É essencial que seja mantido um acesso fácil para o pesquisador, que ainda pode querer fazer uso desse material. Por isso, o arquivo intermediário deve ser de acesso direto e não burocratizado, e precisa estar no mesmo local de trabalho do pesquisador – não pode ficar em um prédio distante, nem pode depender da boa vontade de um funcionário para sua consulta.
Essa etapa intermediária habituará o pesquisador a entender que a sua documentação de trabalho tem existência própria, devendo reduzir seu apego a esse material e preparando-o para a futura transferência dessa documentação para um arquivo permanente.
A terceira fase é a de incorporação de uma parte selecionada da documentação aos arquivos histórico do instituto/faculdade ou da instituição. Isso ocorrerá, normalmente, após a aposentadoria do pesquisador, ou no caso de material mais antigo, do qual ele próprio já não pretende fazer uso. O acesso do pesquisador a esse material é mais indireto e demorado, por isso é pouco desejável que a transferência ocorra precocemente.
Para que uma estratégia como essa tenha sucesso, é preciso que seja criado um clima de colaboração entre a equipe de memória científica e os pesquisadores. O grupo de trabalho de memória científica não deve procurar impor normas antipáticas, nem dificultar o trabalho do pesquisador. Também não deve sobrecarregar o pesquisador com tarefas que tomem muito tempo e para a qual ele não veja utilidade direta. Apenas com um clima de colaboração será possível desenvolver uma conscientização, por parte dos cientistas, de que os documentos que ele produz são importantes para a coletividade, não só para ele próprio.
Se forem tomados os cuidados adequados, os pesquisadores se sentirão valorizados, colaborarão, e a interação com a equipe de memória científica servirá de oportunidade para uma reflexão de grande utilidade.
No caso da presente proposta, durante a primeira fase de preservação (arquivos correntes), a documentação permanece na sala dos próprios pesquisadores, não sendo exigido nenhum espaço adicional para isso, nem havendo a necessidade de funcionários encarregados de cuidar desse material. Como já foi indicado, o trabalho de organização e preservação será feito pelo próprio pesquisador, de forma simples, com orientação do grupo de preservação da memória científica. Não é desejável que o cientista dedique mais do que 1% de seu tempo de trabalho para tal tarefa. Mas ele deve ser convencido de que, se dedicar certo tempo a isso, sua própria pesquisa será facilitada.
Na segunda fase (arquivos intermediários), os grupos ou departamentos devem dispor de espaço, mobiliário e material (como caixas) para acondicionamento do material; algum funcionário do próprio grupo ou departamento deve ser encarregado de manter uma organização básica do material, e de registrá-lo de forma sucinta. Isso pode gerar problemas práticos (falta de espaço, móveis, funcionários), mas a instituição tem o dever de suprir essa necessidade.
A terceira fase (arquivo permanente) exige igualmente espaço, infraestrutura e funcionários para organização do material e para disponibilizá-lo para consulta por parte dos historiadores. A instituição deve assumir esse encargo.
No exemplo numérico acima apresentado, a equipe dedicada à coleta de documentação científica da universidade disporia de 2.500 dias úteis de trabalho por ano para trabalho “interno” (sem contato com os pesquisadores). Suponhamos que a maior parte desse tempo (1.500 dias úteis por ano) seja dedicada à organização de acervos que estão sendo transferidos para o arquivo permanente. Em condições estáveis, uma proporção de menos de 5% dos professores de uma universidade irá se aposentar, a cada ano [Essa estimativa não vale para universidades novas, nas quais a proporção é menor; nem para situações especiais, como a existente atualmente (2003) na Unicamp, pois as recentes mudanças de legislação estimularam muitos professores a se aposentarem ao mesmo tempo.]. Suponhamos, então, um total de 5% de 2.000 professores se aposentando por ano, ou seja, 100 docentes. A equipe técnica poderá dedicar apenas 15 dias úteis (3 semanas) de trabalho (em média) à documentação de cada docente, e nesse tempo precisará fazer uma seleção, organização e descrição do material. Será esse tempo suficiente?
Como já foi indicado acima, tudo depende dos objetivos estabelecidos e das condições de trabalho. Supondo que as duas etapas anteriores foram cumpridas, o material recebido para seleção e eventual preservação no arquivo permanente já estará razoavelmente organizado e já será razoavelmente conhecido pela equipe, que acompanhou durante décadas o pesquisador que está se aposentando. Será necessário desenvolver técnicas de trabalho que permitam realizar, dentro desse prazo exíguo, um trabalho básico de seleção, organização e descrição superficial que seja suficiente para que os pesquisadores localizem e possam fazer uso desse material. É um desafio, não há dúvidas – mas é preciso vencê-lo.
Na situação inicial de desenvolvimento do projeto de memória científica e tecnológica de uma instituição, haverá certamente problemas maiores, pois será necessário partir de uma situação bastante caótica e de um grande número de professores já aposentados (e até falecidos). Nesse caso, certamente será necessário um maior investimento inicial de tempo.
Quando se fala sobre a preservação de documentos científicos, é necessário pensar não apenas em papéis contendo textos, mas também considerar muitas outras formas de documentos. Atualmente, ganha importância o problema da preservação de documentos digitais, ou seja, codificados sob forma binária. Muitas vezes se utiliza a expressão "documento eletrônico" como sinônimo de "documento digital", o que não é muito conveniente, porque uma fita magnética de áudio ou vídeo é também um documento eletrônico, sem ser digital.
Antigamente, quase toda a documentação arquivística consistia em papéis, além de pequena quantidade de fotografias, e outros tipos de documentos em variados suportes. Atualmente, produz-se uma grande quantidade de documentos digitais, e ao se considerar a preservação da memória científica é necessário levar isso em conta.
A maior parte dos pesquisadores utiliza de modo intensivo vários recursos computacionais e produz diferentes tipos de documentos digitais, tais como:
· textos (artigos, livros, correspondência, anotações, projetos, relatórios,...)
· imagens (imagens técnicas digitais produzidas por diferentes aparelhos, esquemas, gráficos, fotografias...)
· dados (produzidos por instrumentos automáticos), bancos de dados de diferentes tipos, tabelas, etc.
· correio eletrônico
· e muitos outros...
Uma parte do material digital de cada pesquisador existe também sob forma impressa, mas pode não existir uma versão em papel de grande parte dos arquivos dos computadores de cada cientista. É importante conservar essa documentação digital, mesmo quando existe uma versão em papel, porque a versão digital apresenta maior facilidade de buscas, armazenamento e transmissão à distância.
Há problemas especiais no arquivamento de documentos digitais. Em primeiro lugar, porque ainda não há tradição arquivística reconhecida para o tratamento desses documentos. Em segundo lugar, porque os cientistas não se preocupam muito com a conservação de documentos eletrônicos antigos. Além disso, os documentos eletrônicos exigem novas técnicas de preservação e podem apresentar dificuldades de utilização, a longo prazo. De fato, os meios nos quais os documentos digitais são armazenados podem não ser de longa durabilidade (por exemplo, discos e fitas magnéticas) e, mesmo quando são de longa duração (por exemplo, discos ópticos de boa qualidade) os equipamentos computacionais do futuro podem não ser capazes de manipular esses suportes, e podem não ser capazes de reconhecer a forma sob a qual a informação está armazenada nos mesmos. Por exemplo: ninguém sabe, hoje, se um arquivo do Word for Windows poderá ser lido facilmente daqui a 50 anos; e provavelmente os computadores do futuro não terão um dispositivo capaz de ler os discos ópticos atuais.
No Brasil, o uso de computadores pessoais pelos cientistas se iniciou há cerca de 15 anos, tornando-se atualmente uma ferramenta de uso generalizado. Durante esse curto espaço de tempo, já presenciamos várias alterações tecnológicas importantes, como o desaparecimento dos antigos disquetes magnéticos de grande tamanho (do tamanho de um CD atual, porém capazes de armazenar apenas 36 kilobytes), e o desaparecimento de vários programas que eram utilizados em torno de 1990 (por exemplo, alguns editores de texto e programas de bases de dados antigos). Ao longo desse tempo, todos os pesquisadores já perderam involuntariamente muitos documentos digitais (por vírus, defeitos de discos rígidos, apagamento acidental, disquetes que já não podem ser lidos, etc.). O hábito de fazer cópias de segurança dos seus arquivos digitais não é generalizado, e podem existir limitações técnicas importantes - nem todos os computadores possuem gravadores de discos ópticos, por exemplo.
Para que os documentos científicos digitais possam ser preservados e utilizados no futuro, devem-se desenvolver estratégias adequadas, que deverão envolver:
· armazenamento centralizado automático de documentos digitais
· preservação de equipamentos e programas antigos
· transformação periódica de formatos e de suporte digital
A preservação dos documentos científicos digitais não pode ser confiada a cada pesquisador, individualmente. Deve-se estruturar um sistema de armazenamento centralizado, que pode funcionar da seguinte forma. Cada computador de uma unidade universitária (instituto, faculdade, etc.) que esteja ligado à rede de informática da instituição deve ser dotado de um programa que faça um backup automático de seus documentos, fazendo uma cópia de segurança dos mesmos, através da rede, para um servidor central de backup. Estabelecer esse sistema é muito simples. Basta instalar em cada computador um programa simples, que pode entrar em ação diariamente (por exemplo) quando o computador está inativo (isto é, quando o protetor de tela é acionado, geralmente depois de 5 minutos de falta de atividade do teclado e do mouse). Assim, sem atrapalhar o pesquisador, o computador verificará os novos documentos existentes e transferirá cópias para o servidor.
No caso de computadores que não estejam ligados à rede de informática da instituição, a alternativa é que um funcionário encarregado da execução de cópias de segurança visite periodicamente esses equipamentos, levando um aparelho portátil de gravação de discos rígidos, ou outro sistema semelhante, para fazer o backup dos computadores.
Não é possível dispor de servidores capazes de armazenar todos os documentos digitais de todos os professores, estudantes e funcionários de uma unidade universitária de tamanho médio (entre 100 e 1000 computadores). Além disso, considerando que o próprio disco rígido do servidor pode apresentar falhas, é importante que os documentos digitais sejam gravados periodicamente em suportes de longa duração (atualmente, em discos ópticos do tipo CD ou DVD). Para maior facilidade de operação e de recuperação as informações, pode-se estabelecer um controle da quantidade de dados transferida ao servidor por cada usuário, e transferir esses dados para discos ópticos (ou outro sistema confiável de armazenamento) quando se atingir, para cada usuário, um volume próximo ao limite máximo do próprio disco óptico (atualmente, 700 megabytes para um CD gravável).
As cópias de segurança dos documentos digitais dos pesquisadores devem ser guardadas inicialmente nas suas próprias unidades (departamentos, institutos ou faculdades). Depois de algum tempo (talvez 10 anos), elas podem ser transferidas a um arquivo digital centralizado da instituição.
Em cada instituição é necessário manter um "museu de informática", com a preservação de equipamentos em pleno funcionamento, com acessórios e dotados de programas antigos, de modo a permitir o uso de documentos digitais mais antigos. Mas isso não é suficiente, pois os suportes das informações (incluindo os discos rígidos dos computadores antigos) podem não funcionar depois de algumas décadas. É essencial estabelecer uma rotina de atualização dos documentos eletrônicos, fazendo uma transformação periódico de formatos e de suporte digital. Assim, se os discos ópticos atuais se tornarem obsoletos e começarem a desaparecer daqui a 10 anos, será necessário transferir o conteúdo de todos os discos atuais para outro tipo de suporte, quando isso ocorrer. Além de preservar a possibilidade de acesso aos dados, cada transformação representará sempre uma redução drástica do espaço de armazenamento. Basta lembrar que, há pouco tempo, precisávamos de mais de 400 disquetes para guardar os documentos digitais que cabem atualmente em um único disco óptico. De forma semelhante, os computadores pessoais de 1990 tinham discos rígidos de aproximadamente 100 megabytes, e atualmente possuem discos rígidos pelo menos 100 vezes maiores do que aqueles.
Os principais tipos de documentos digitais (textos, imagens, bases de dados) precisam ser periodicamente convertidos para formatos atualizados, de modo a garantir a possibilidade de utilizá-los no futuro. Como será possível, daqui a 50 anos, ler documentos do Word for Windows? Ou, para percebermos melhor o problema, como podemos atualmente ler bases de dados criados pelo programa dBase há 10 anos, ou documentos de texto criados pelo programa Word Star? Esses programas já não existem mais, tendo sido substituído por outros. Durante alguns anos, após a "morte" de cada programa, os seus sucessores conservam uma compatibilidade com os formatos antigos, e é possível fazer a conversão dos documentos. Mas é claro que, para se projetar um sistema envolvendo milhares ou milhões de documentos eletrônicos, não se pode pensar em uma conversão de cada um deles individualmente. Felizmente, há programas que fazem, de forma automática, a conversão de formatos, tais como a transformação de imagens de um tipo de formato (por exemplo, BMP) para outros formatos (por exemplo, TIF ou JPG). É preciso utilizar programas desse tipo para atualizar os documentos que estejam em formatos em vias de desaparecimento.
Será viável, sob o ponto de vista prático, armazenar todas as informações digitais de todos os pesquisadores (professores, estudantes de pós-graduação, técnicos) de uma instituição? Consideremos, por exemplo, uma unidade universitária com 200 pesquisadores. Para que o servidor central de backup possa guardar até um gigabyte de informações por pessoa, é necessário utilizar um computador com um conjunto de discos rígidos, que deverá ter (por segurança) uma capacidade total de 400 gigabytes. Pode-se também utilizar um conjunto de computadores de menor capacidade. O custo de um equipamento desse porte não é alto: será da ordem de US$3,000.00.
Como já foi indicado acima, periodicamente o conteúdo novo de cada computador é copiado para o servidor; e quando se acumula um volume de dados da ordem do limite máximo de um disco óptico (700 megabytes) essas informações são gravadas em disco e apagadas do servidor. Suponhamos que cada pesquisador, em média, acumule por ano um total de documentos novos correspondente a cerca de 10 discos ópticos atuais (entre 5 e 10 gigabytes). Esta é uma estimativa generosa, para os padrões atuais. Os dados dos 200 pesquisadores da unidade hipotética que estamos analizando exigirão a gravação de 2.000 discos ópticos por ano. É muito, mas deve-se pensar em termos relativos. Considerando 250 dias úteis por ano, a pessoa encarregada do controle desse serviço precisará gravar apenas 8 discos ópticos por dia, em média, o que pode ser feito em aproximadamente uma hora de trabalho, com os equipamentos atuais.
O custo desse armazenamento é muito baixo, por pesquisador (atualmente, cerca de US$10.00 por ano). Considerando não apenas a preservação da memória científica mas a própria segurança dos dados dos pesquisadores, essa despesa é plenamente justificável. Não há dúvidas de que os próprios pesquisadores, que freqüentemente perdem seus dados por falhas de seus computadores ou por vírus, apoiarão fortemente uma política de backups centralizados, como a que foi aqui exposta.
No futuro próximo, os volumes a serem preservados por ano, por pesquisador, devem crescer, à medida que os pesquisadores utilizam arquivos cada vez maiores e trocam muitas informações pela Internet - porém, os meios de armazenamento devem aumentar seguindo essa tendência, adquirindo maior capacidade, e seu custo deve diminuir. Portanto, é provável que o custo de preservação das informações digitais dos pesquisadores se mantenha tão baixo (ou ainda mais baixo) do que a estimativa acima indicada.
Muitos pesquisadores acumulam enorme quantidade de documentos eletrônicos que não foram produzidos por eles próprios, e sim recebidos de outras pessoas, ou copiados da Internet. Pode tratar-se de imagens, livros eletrônicos, programas, etc. Em muitos casos, pode ser inútil o armazenamento dessas cópias. Se for o caso, podem ser feitos acordos com os pesquisadores para que eles guardem esse tipo de material em pastas especiais de seus computadores pessoais (por exemplo, pastas destinadas a download de arquivos), e o sistema de backup irá ignorar esses documentos.
Há, no entanto, outras dificuldades práticas:
· armazenamento
· organização
· privacidade
Muitas pessoas possuem dezenas ou até centenas de discos ópticos de música e sabem que esses discos ocupam um espaço significativo. Se considerarmos 2.000 discos ópticos gravados por ano na unidade de pesquisa hipotética descrita acima, e se esses 2.000 discos forem conservados em caixas plásticas individuais, colocados em gavetas ou estantes especiais para armazenamento de CDs, eles ocuparão 20 metros lineares, correspondendo a duas grandes estantes especiais para CD. Em poucos anos, seria preciso dispor de uma sala especial de tamanho razoável, para armazenar esse material.
Porém, deve-se pensar em alternativas. O armazenamento de CDs em envelopes de papel ou de plástico, sem a caixa, reduz sua espessura a apenas um quarto da espessura das caixas, reduzindo assim o volume anual (2.000 discos) a apenas 5 metros lineares. Por outro lado, a gravação de dados em DVD permite colocar um volume de informações 8 vezes maior do que um CD, em um disco de iguais dimensões. O problema de espaço pode ser superado, portanto, com o uso de formas mais compactas de armazenamento e a utilização, sempre que possível, de suportes de alta capacidade (como DVD, atualmente).
Se não houver uma boa organização dos documentos digitais, será impossível encontrar alguma coisa em milhares de discos ópticos guardados em uma sala. É preciso criar bancos de dados descrevendo o conteúdo de cada disco óptico. A descrição será necessariamente sumária, como as informações obtidas quando se verifica o conteúdo de uma pasta em um computador (nomes dos arquivos, data de criação ou modificação, tamanho, pasta em que se encontra, computador em que foi originado, pesquisador que utiliza o computador). Isso pode ser feito automaticamente. Utilizando essa base de dados, será tão fácil (ou tão difícil) encontrar uma informação no depósito de discos ópticos quanto ao fazer uma procura dentro de um computador.
Em casos especiais, é possível criar sistemas de busca mais inteligentes. Por exemplo: pode-se criar, em um computador ou uma rede de computadores, um sistema de busca semelhante aos utilizados atualmente na Internet (Google, AltaVista), que permita fazer busca rápida de documentos contendo certas palavras ou combinações de palavras. Sistemas como esse, que tornam o acesso aos documentos mais fácil, podem ser criados posteriormente, se isso for conveniente.
Tanto no caso de documentos em papel quanto no caso de documentos digitais, os pesquisadores podem não querer que outras pessoas tenham livre acesso a todo seu material. Há documentos confidenciais (inclusive pareceres científicos), mensagens eletrônicas de caráter pessoal, etc. É razoável que o pesquisador se preocupe com isso. Por esses motivos, devem ser negociadas regras claras de privacidade, com a comunidade científica.
Cada pesquisador pode, se assim o quiser, criptografar qualquer informação de seus computadores. Há programas simples que podem fazer isso. Os programas de compactação de arquivos (que criam arquivos do tipo ZIP) possuem uma opção de criptografia, que só permite consultar os arquivos compactados com o uso de uma senha. Há vários outros recursos simples semelhantes. Os pesquisadores devem ser informados sobre essa possibilidade e têm o direito de optar por seu uso. No entanto, deve-se notar que os documentos criptografados não poderão ser acessados pelos historiadores, no futuro, sem o conhecimento da senha utilizada pelo pesquisador. Poderia ser conveniente negociar, com os pesquisadores que criptografam suas informações, a liberação futura (em um prazo determinado) de suas senhas.
No caso de pesquisadores que não queiram criptografar suas informações (penso que a maioria), devem ser dadas garantias de que eles mantêm controle sobre o acesso de seus documentos eletrônicos, se assim o quiserem, enquanto quiserem. Deve-se formalizar esse compromisso, através de um documento oficial. Os níveis de acesso mais usuais que um pesquisador pode autorizar são combinações dos seguintes:
· acesso irrestrito (qualquer finalidade) ou restrito (certas finalidades);
· sem limite de data, ou a partir de uma certa data;
· sem necessidade de autorização, ou com autorização pelo titular, ou com autorização da equipe de memória científica, condicionada a certas regras.
As condições de acesso devem ser negociadas com cada pesquisador, e podem ser alteradas a qualquer tempo por decisão do titular.
Há desafios enormes para a preservação do patrimônio científico e tecnológico nas universidades e outras instituições científicas. Uma enorme quantidade de documentos importantes já foi perdida, e uma grande quantidade está para se perder. É necessário cuidar da documentação antiga que está em perigo, mas é também essencial criar mecanismos para a preservação da documentação corrente, que terá futuramente grande importância histórica.
Diante da importância de preservar a documentação científica das universidades, é preciso analisar novos problemas e recorrer a novas estratégias, que nunca foram implantadas.
Diante do grande desafio existente, é preciso pensar nos limites práticos, de tal modo a poder atingir excelentes resultados com recursos materiais e humanos limitados. Antes de iniciar qualquer trabalho, deve-se procurar otimizar os procedimentos, para atingir os melhores resultados possíveis com o uso de estratégias de baixo custo. Ao se trabalhar com uma grande massa de documentos, não se pode querer utilizar a mesma estratégia que se emprega no caso de pequenos acervos. Para se organizar a documentação de centenas ou milhares de pesquisadores não se pode querer fazer inventários detalhados, que podem consumir mais de um ano de trabalho de um arquivista.
Deve-se pensar também nos aspectos humanos, tomando todos os cuidados para obter a cooperação dos produtores e detentores da documentação científica.
A tarefa a ser realizada é imensa, mas ela pode ser realizada, e deve ser realizada.