Walmir Thomazi Cardoso

Conceitos e fontes do Tratado da Esfera em forma de diálogo atribuído a João de Castro

São Paulo: Educ, 2004
ISBN 85-283-0284-9 
335 pgs.

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Prólogo
Um texto astronômico português do século XVI
 
    O trabalho de Walmir Thomazi Cardoso, aqui apresentado, é o resultado de um excelente trabalho de pesquisa, desenvolvido de 1998 a 2000, por ocasião de seu mestrado em História da Ciência. O tema central é a análise de uma obra científica portuguesa sobre astronomia, que permaneceu inédita durante alguns séculos, tendo sido publicada apenas em 1940. Essa obra anônima, o Tratado da esfera, por perguntas e respostas, a modo de diálogo, tem sido atribuído a Dom João de Castro, importante personagem da história portuguesa do século XVI, tendo sido Vice-Rei da Índia.
 
A dissertação de mestrado de Walmir Thomazi Cardoso foi desenvolvida no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O texto sofreu apenas pequenas alterações, para adquirir a forma do presente livro.

    A cosmologia do século XVI, que será aqui descrita, foi fundamentada, essencialmente, na astronomia geocêntrica antiga e medieval. O século XVI é o século de Nicolau Copérnico, que vai propor uma nova visão de mundo; mas Copérnico é a exceção, não a regra. Assim, o que este livro discute não é a “revolução copernicana”, e sim a visão astronômica predominante naquele tempo, mas que foi abandonada no século seguinte.
 
    Para o leitor de hoje, que considera a astronomia de Copérnico, Galileo e Kepler, como sendo muito superior à antiga, pode parecer estranho dedicar um enorme esforço à compreensão de textos “ultrapassados”. Para quem não tem uma formação adequada em História da Ciência, o estudo de autores e de idéias que não são mais aceitos hoje em dia pode não ser muito atraente. Porém, a atual historiografia da ciência se caracteriza por tentar compreender cada teoria, cada pensador, sob o ponto de vista da própria época, e não de forma anacrônica.
 
    Os filósofos e astrônomos do século XVI, que davam ao universo uma interpretação completamente diferente da atual, não eram tolos. Eram pessoas que tinham uma capacidade intelectual equivalente à nossa, que estudaram e pensaram sobre o assunto, e optaram por uma certa visão de mundo por razões que lhes pareciam muito boas. É preciso penetrar no espírito daquele tempo, para poder compreender o real valor do pensamento astronômico de épocas anteriores.
 
    O Tratado da esfera português aqui discutido já foi estudado antes por diversos historiadores. No entanto, nunca havia recebido um tratamento como o apresentado aqui. O professor Walmir Cardoso mergulhou nos meandros nesse texto, procurando compreender detalhadamente suas idéias e buscando as fontes nas quais o autor se baseou para elaborar sua obra. Pela abordagem utilizada e pela profundidade da pesquisa, esta obra é uma contribuição fundamental à historiografia da astronomia e cosmologia portuguesa do século XVI, e constitui certamente um marco difícil de ser suplantado pelos historiadores futuros.
 
    Há vários aspectos importantes na pesquisa aqui publicada. Por um lado, para procurar captar de forma adequada todos os aspectos desse Tratado da esfera, foi realizado um estudo de grande número de textos astronômicos e cosmológicos da época, ou anteriores – obras em que o autor desse Tratado da esfera dialogado poderia ter se baseado ao redigir seu trabalho.

    Poder-se-ia pensar que seria suficiente tomar o Tratado da esfera em questão e compará-lo com aquilo que os historiadores da astronomia já escreveram sobre a época. Infelizmente, é muito pequeno o número de estudos historiográficos a respeito da astronomia e cosmologia renascentista, e não é possível obter uma boa visão das idéias da época desse modo. É preciso consultar fontes primárias, os trabalhos originais da própria época.
 
    É claro que há um número imenso de livros que poderiam ser estudados. Um pesquisador que dispusesse de um tempo infinito e de recursos financeiros que lhe permitissem visitar as melhores bibliotecas do mundo poderia acrescentar muitas novas informações ao trabalho aqui publicado. No entanto, dentro dos limites de tempo de uma pós-graduação, e com os recursos bibliográficos limitados disponíveis no Brasil , não seria possível fazer uma pesquisa mais completa do que a que foi realizada.
 
O autor não teve a oportunidade de visitar bibliotecas do exterior, durante sua pesquisa; mas foi possível utilizar uma boa quantidade de obras inexistentes no Brasil, especialmente das bibliotecas de Cambridge (Inglaterra) e de Pavia (Itália).

    Outro aspecto importante da presente pesquisa é que ela se refere à ciência portuguesa antiga, mas adotando uma abordagem pouco usual. Quase todos os historiadores da ciência que se voltaram para a ciência portuguesa renascentista tinham o objetivo de mostrar que os portugueses eram excelentes pensadores, iguais ou melhores do que os de outros países cuja ciência é mais conhecida. Houve autores, por exemplo, que tentaram ver neste Tratado da esfera atribuído a Dom João de Castro uma atitude científica moderna, negando a tradição e valorizando a experiência – muito antes de Galileo.
 
    Essa atitude ufanista, de mostrar “como eram ótimos nossos antepassados”, é tão pouco adequada em uma pesquisa histórica quanto a atitude anacrônica já criticada antes. Não devemos nem ver o passado com os padrões críticos do presente, nem procurar no passado apenas aquilo que podemos elogiar. No passado, como agora, qualquer pensador tem aspectos positivos e negativos. É preciso adotar uma atitude de quase indiferença, sem intenção de atacar ou defender os autores estudados, encarando tanto seus pontos fortes quanto os pontos fracos, para ser capaz de compreender realmente seu pensamento em sua totalidade, sem distorcê-lo totalmente.
 
    Infelizmente, tal atitude é rara, e um dos méritos da presente pesquisa foi ter aderido de forma coerente a esse padrão de neutralidade. Em alguns pontos, o autor do Tratado da esfera dialogado é criticado – mas não de forma anacrônica, tomando por base o conhecimento atual, e sim de forma diacrônica, ou seja, levando em conta os conhecimentos e métodos da própria época. Isso permite colocar o texto em seu devido lugar.
 
    Tive a grata oportunidade de participar desta investigação, no papel de orientador de tese. Não é todos os dias que podemos trabalhar com uma pessoa tão entusiasmada pela pesquisa como Walmir Cardoso.
 
    Qualquer pessoa que esteja familiarizada com dissertações de mestrado em História da Ciência – ou em outras áreas – poderá perceber que este não é um produto “típico”. Ao iniciar o trabalho, estabelecemos como meta desenvolver um trabalho de excelente nível, sem nos limitarmos aos padrões considerados “aceitáveis” para uma dissertação de mestrado. À medida que a pesquisa se desenrolava e crescia como uma bola de neve, com o surgimento de inúmeros desdobramentos, novas fontes a consultar, novos indícios a investigar – aquilo que geralmente leva os estudantes ao pânico – mais Walmir Cardoso se apaixonava pelo tema. Partilhar com ele essa viagem ao passado foi um imenso prazer.
 
    Pela excelente qualidade do trabalho apresentado, esta dissertação de mestrado foi considerada por uma comissão da PUC-SP como um dos melhores trabalhos desenvolvidos em todas as áreas, no ano de 2000, tendo sido por isso escolhida para ser publicada pela Editora da mesma Universidade. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) patrocinou a publicação desta obra. O aval dessas duas instituições mostra que se trata de uma ótima contribuição, que poderá ser lida com proveito e prazer por todos os que quiserem penetrar nesse mundo intelectual pouco conhecido, quando a Terra estava parada e os planetas eram transportados por esferas transparentes movidas por anjos.

Roberto de Andrade Martins
Grupo de História, Teoria e Ensino de Ciências
Instituto de Física “Gleb Wataghin”
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)


Grupo de História, Teoria e Ensino de Ciências – UNICAMP