Independência cultural e científica: paralelos e diferenças

Roberto de Andrade Martins

    Quando se fala na independência de uma nação, costuma-se pensar em autonomia política e – modernamente – econômica. Mas existem outras dimensões que caracterizam uma nação. Um desses elementos é a identidade cultural, com seus aspectos sociais, lingüísticos e outros. Suponhamos que houvesse um governo mundial centralizado e que a economia fosse totalmente globalizada. Deixaria de existir o Brasil? É claro que, enquanto território geográfico, com seus rios, montanhas, praias, palmeiras e sabiás, o Brasil continuaria a existir. Mas consideremos o povo que aqui habita, não seu território.

    Transporte-se um brasileiro para outro país, como a Inglaterra. Sua aparência física, seu sotaque, até mesmo seu modo de vestir-se, de andar e seu comportamento social irão trai-lo, mostrando tratar-se de um estrangeiro. Logo se perceberá que ele sente falta de muitas coisas do Brasil: algumas que lhe dizem respeito como indivíduo (sua família, seus amigos, sua casa e objetos) e outras que lhe dizem respeito enquanto brasileiro: seu idioma, o café, a comida, o futebol, as festas (do Carnaval ao São João), a música, as novelas, e outras. Não, mesmo se deixasse de haver independência política e econômica, o Brasil só deixaria de existir se fosse unificada a cultura, em todos os seus aspectos.

    Consideremos agora outros aspectos do mundo humano que nos cerca. Poderia nosso brasileiro hipotético sentir falta de artefatos típicos do Brasil, que não se encontram em países desenvolvidos? O estilo de nossas casas, móveis, roupas, automóveis, eletrodomésticos... nada disso pode ser considerado como tipicamente brasileiro. Sim, o Brasil exporta manufaturados e produtos industrializados – mas isso só ocorre quando o preço é baixo, e não por se tratar de um produto originalmente brasileiro, ou por produzirmos algo de excepcional qualidade. Bem, é verdade que tínhamos o carro a álcool, mas isso pertence ao passado. Dependemos, de forma esmagadora, de tecnologia importada.

    Será que não se produz nada original e de boa qualidade aqui? Bem, em certas áreas a posição do Brasil não é tão negativa. Pensemos na produção artística nacional. A música brasileira, por exemplo, tem estilos próprios, além de ter atingido picos de altíssima qualidade. A qualidade, é claro, não deve ser avaliada pela penetração internacional, pois nesse caso a fase da lambada deveria ser considerada uma das melhores do país. Independentemente de haver uma boa comercialização no exterior – que é influenciada por muitos fatores além da qualidade – há certamente compositores e músicos, de muitos estilos, de que podemos nos orgulhar.

    Gostemos ou não de novelas, trata-se de outra área em que a produção cultural brasileira atingiu um estilo próprio e boa qualidade técnica, reconhecida em outros países. Embora cinema e televisão sejam distintos e seja difícil compará-los em muitos aspectos, é evidente que não conseguimos na área cinematográfica um desenvolvimento equivalente ao televisivo. A literatura de nosso país possui grandes autores – muitos deles representando uma cultura brasileira, distinta daquela de outros países. Nenhum estrangeiro pode ler Guimarães Rosa ou de Jorge Amado sem perceber imediatamente que se trata de literatura exótica, que pinta um mundo físico e social diferente.

    Em algumas áreas, pelo menos, o Brasil parece ser capaz de uma produção cultural independente, autêntica, de bom nível. E nossa ciência? O que podemos dizer sobre nossa produção acadêmica? Podemos dizer que temos uma ciência autenticamente brasileira e de bom nível, como ocorre nas áreas culturais apontadas acima?

    Antes de procurar responder a essa pergunta, é preciso fazer uma reflexão mais geral: Pode-se falar em ciência “nacional”, ou a ciência moderna é algo necessariamente internacional? Em épocas em que existiam civilizações com pequena interação cultural – várias centenas de anos atrás – era possível o desenvolvimento de ciências bastante independentes. A astronomia indiana, a chinesa e a babilônica, por exemplo, eram muito diferentes entre si, na Antigüidade. Mas faria sentido, atualmente, falar-se em astronomia francesa, astronomia inglesa, astronomia alemã?

    Na área de ciências humanas, a opinião geral é de que existem diferenças marcantes entre os autores alemães, os franceses e os americanos, por exemplo. Pensem, por exemplo, nas diferenças entre as linhas de pesquisa psicológica nos vários países, ou na área antropológica, sociológica, lingüística, etc. Essas diferenças nacionais podem ser entendidas sob várias formas. Por um lado, existem “estilos” diferentes nas ciências humanas, nesses países. Uma pessoa bem familiarizada com uma área de pesquisa pode geralmente reconhecer o país de origem de uma pesquisa, independentemente do idioma em que foi escrita. Por outro lado, existem “escolas” de pensamento, formadas por indivíduos ou grupos que influenciaram grande número de pesquisadores, que adotaram suas idéias e linhas de trabalho. Quando uma nova teoria ou área de estudos surge e se desenvolve primeiramente em um país, a “escola” assim formada permanece vinculada à sua origem geográfica, mesmo depois de se espalhar pelo mundo.

    Existirá alguma área de pesquisa em que o Brasil tenha se destacado e se tornado um centro de referência mundial? Vocês podem imaginar um professor norte-americano dizendo a seu aluno: “Rapaz, se você quer estudar isso, vá para o Brasil, porque lá existem os melhores especialistas no assunto”? Bem, é claro que isso pode acontecer. Se o objeto de estudo da pesquisa for algo regional, é claro que os pesquisadores daquela região podem se tornar os melhores do mundo. Consideremos, por exemplo, a vegetação ou a fauna brasileira. Por motivos óbvios, temos uma enorme vantagem sobre todos os outros países para estudar as espécies típicas de nosso país. Não haverá grande motivo de orgulho se tivermos os melhores especialistas do mundo em beija-flores brasileiros ou em lingüística do português falado no Brasil. Será motivo de preocupação, por outro lado, se não tivermos os melhores especialistas no mundo em temas tipicamente brasileiros – como a cultura de nossos índios, ou as religiões afro-brasileiras. No entanto, mesmo quando se trata de temas regionais, serão a base teórica e a metodologia de pesquisa também brasileiras? Não. Nesse caso, não se deve falar em “ciência nacional”.

    Deixando de lado os estudos sobre temas regionais, existe uma ciência brasileira, de algum tipo? Existe uma astronomia tipicamente brasileira, ou uma psicologia brasileira diferenciada, original e de bom nível? Aparentemente, não. A ciência brasileira tem pesquisadores considerados “de nível internacional”, mas em que sentido? No sentido de que são capazes de publicar trabalhos em boas revistas do exterior. Mas o que representa isso, exatamente? Qual o valor de um cientista de nosso país que consegue publicar artigos fora do país?

    Existe um processo de avaliação dos trabalhos que são submetidos a revistas especializadas internacionais, que é bem conhecido. Pode-se imaginar que, se um pesquisador brasileiro consegue publicar seus trabalhos em boas revistas especializadas no exterior, isso ocorreu necessariamente através de uma análise totalmente neutra, em que a nacionalidade e identidade do autor eram desconhecidas dos árbitros; e que o trabalho foi considerado como de bom nível, julgando-se que ele traz alguma contribuição para a área. Há uma segunda possibilidade, no entanto. Os editores das revistas, que recebem os trabalhos e dirigem o processo de julgamento dos mesmos, podem ser pessoas com ambições pessoais, como outros seres humanos. Eles podem ter um papel decisivo no processo de julgamento, escolhendo os pesquisadores que vão dar pareceres sobre os trabalhos. Ao receber um trabalho, uma pessoa que conheça muito bem uma área acadêmica pode escolher árbitros que quase certamente irão aprovar aquele artigo, ou pode escolher árbitros que quase certamente irão rejeitá-lo. Uma escolha tendenciosa feita pelo editor, quando ocorre, pode ser motivada por amizade/inimizade pelo autor – o que acontece em todo o mundo – mas pode também ser motivada por aquilo que poderíamos denominar “colonialismo científico”. Expliquemos o que é isso.

    Um pesquisador de um país desenvolvido pode ter interesse em exercer forte influência sobre a ciência brasileira (ou de outros países). Essa influência serve a vários interesses: obter mais influência em seu próprio país (por mostrar seu poder fora dele); ser tratado como um deus nos países subdesenvolvidos (algo que não ocorre em seu próprio país); divulgar seus trabalhos e livros de um modo mais amplo; criar uma “escola” acadêmica em outros locais; obter mão-de-obra gratuita para desenvolver seus projetos; ter a oportunidade de realizar viagens a lugares exóticos; e outros motivos. Estabelecer essa influência exige um jogo de toma-lá-dá-cá bastante simples, que inclui ajudar os “nativos” a publicarem trabalhos e a participarem de viagens ao exterior, por exemplo. Assim, quando um cientista brasileiro exibe, orgulhosamente, suas publicações internacionais, é necessário admitir seu mérito cum grano salis: não se deve concluir que isso é uma indicação inequívoca de que aquele cientista escreve trabalhos excelentes.

    Haverá a possibilidade de que um cientista brasileiro consiga publicar um trabalho em uma boa revista científica estrangeira sem que tenha ocorrido a intervenção protecionista do editor “esperto”? Sim, isso ocorre realmente, mas nesses casos não indica que os pesquisadores em questão desenvolvem uma pesquisa original, de estilo brasileiro, e sim que são capazes de imitar tão bem as pesquisas realizadas nos países desenvolvidos, que nem se perceba que se trata de autores exóticos. A originalidade é reduzida ao mínimo possível, para que haja aceitação. Vamos fazer uma comparação com a área artística, que poderá tornar mais clara essa idéia. Suponhamos que um cineasta brasileiro queira fazer um filme que tenha boa chance de ser indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Além de todos os jogos de publicidade e de influências, o que ele procuraria fazer? Provavelmente, tratar um assunto brasileiro (regionalismo temático) mas fazendo um filme com estilo norte-americano. Bem, na área acadêmica ocorre a mesma coisa.

    Comparemos, no entanto, esse tipo de situação com uma outra bastante diversa. O que pode ter orientado o trabalho de um Guimarães Rosa ou de um Milton Nascimento? Bem, aqui a história é outra. Trata-se de pessoas que conhecem muito bem aquilo que de melhor se faz no exterior em suas áreas, mas não o imitam. Pessoas que adquiriram por um treino e esforço continuado uma excelente qualidade – e nisso temos, certamente, influência externa – mas que procuram seguir um caminho original, uma busca incessante de aperfeiçoamento da qualidade e de aprofundamento de sua trilha pessoal, que ao mesmo tempo reflete sua individualidade, o Brasil e todo o mundo. Pois bem: onde estão nossos Guimarães Rosas e Milton Nascimentos da ciência brasileira?

    Tomemos um ponto de destaque da pesquisa brasileira, como os trabalhos de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. O que havia de brasileiro nos seus trabalhos? Novamente, o objeto de estudo (doenças que ocorriam no Brasil). A metodologia de trabalho, o estilo de pesquisa, era importado – tratava-se de imitar, o melhor possível, o método do Instituto Pasteur. Nossa ciência é dependente dos países do “primeiro mundo”, em muitos sentidos. Nossa educação imita a desses países; a formação de nossos pesquisadores se dá, muitas vezes, no exterior; os instrumentos e métodos de pesquisa que utilizados são desenvolvidos nos “países avançados”; e – principalmente – os temas e problemas que estudamos são copiados dos pesquisadores estrangeiros.

    Talvez não seja necessário desenvolver ciência no Brasil – talvez baste estudar o que é feito em outros países e treinar os estudantes para reproduzirem conhecimentos vindos de fora. No entanto, isso seria desistir de um papel mais digno para as universidades.

    Seria possível o desenvolvimento de uma ciência brasileira? Tentar nos fecharmos à ciência internacional não seria correr o risco de recair no mesmo erro de quando tentamos desenvolver uma informática brasileira? Seria tolice pensar que uma ciência brasileira poderia surgir fechando-se os olhos à ciência internacional. É preciso, sim, conhecer muito bem aquilo que ocorrem no mundo, dominar as melhores teorias e técnicas de trabalho internacionais – e depois ultrapassar isso. De que forma?

    Uma primeira condição para se poder fazer uma boa ciência brasileira é uma excelente capacitação profissional: treino científico de bom nível, aquisição de métodos de pesquisa, experiência de investigação. É necessário adquirir experiência em ciência internacional, procurando extrair as regras gerais que guiam uma boa pesquisa científica – os desiderata da ciência – aprendendo a avaliar investigações, elaborar projetos, perceber lacunas, identificar falhas, etc. Esse treino inclui o desenvolvimento de um aguçado espírito crítico. Não é esse, infelizmente, o tipo de aprendizagem que se costuma adquirir nas universidades. A capacidade de avaliação é pouco estimulada.

    A busca de originalidade não pode servir de desculpa para uma pesquisa de baixo nível – a menos que queiramos produzir apenas uma ciência folclórica. A melhor música não pode brotar de pessoas destreinadas e da mesma forma uma boa ciência exige um treino específico, capaz de gerar trabalhos de qualidade – mas que deve ser dirigido de modo a não reproduzir apenas cópias de modelos externos.

    Segunda condição: evitar modismos. Na ciência, como em outras áreas, há sucessivas “modas”, que surgem de uma forma gradual, depois adquirem visibilidade e importância, tornam-se parte da ciência internacional, depois decaem, perdendo sua fertilidade e sendo substituídas por outras. Essas “modas” surgem normalmente nos países de primeiro mundo. Quando se tornam visíveis e sua importância é reconhecida, elas começam a despertar a atenção de pesquisadores brasileiros, que se dedicam então a estudá-las, passam algum tempo adquirindo novas linguagens, técnicas, adquirindo equipamentos (no caso da pesquisa experimental), e após algum tempo (geralmente alguns anos) tornam-se capazes de pesquisar seguindo o novo paradigma. No entanto, quando isso acontece, o modelo já está decadente. O pesquisador de terceiro mundo prossegue trabalhando naquela área, por causa de todo o esforço investido, enquanto no primeiro mundo aquela “moda” já está sendo abandonada e substituída por outra. E segue-se novo modelo, nova tentativa de imitação, e assim por diante. Pelo hábito de imitar modismos, a ciência brasileira se assemelha muito àquela imagem de uma carroça puxada por um burro à frente do qual se amarra uma cenoura. O animal nunca vai abocanhar seu prêmio, mas continua correndo atrás do objetivo inatingível.

    Nas ciências exatas, médicas, naturais ou humanas, todos os modismos têm ardentes seguidores no Brasil. Grandes investimentos foram feitos durante as décadas de 1950 e 1960 em física nuclear, que era considerada a mais importante área de pesquisa – mas não se pode dizer que a física brasileira tenha dado alguma contribuição relevante para esse campo. Depois, houve a moda da energia solar, que consumiu milhões de dólares, sem resultados apreciáveis. Existe alguma possibilidade de surgir uma contribuição brasileira realmente relevante em física do estado sólido, física de plasmas ou outras áreas pesquisadas hoje? Se apenas ficarmos imitando as pesquisas internacionais, como macacos, teremos apenas uma ciência ridícula. Será possível escapar aos modismos? Sim, é possível. Mas para isso é necessário possuir uma visão histórica adequada, que permite vê-los como realmente são: etapas passageiras de um processo de renovação constante, e não a panacéia que irá resolver todos os problemas.

    A criação de uma contribuição científica original e importante exige a delicada combinação de um forte espírito crítico – necessário para obter resultados de alto nível – com um espírito aberto a especulações e novidades – necessário para que a criatividade possa atuar. O resultado final tem que ser excelente, no entanto, uma ciência original “em estado nascente” pode não satisfazer os critérios mais rigorosos. O pesquisador original se permite errar, explorar caminhos que levam ao fracasso, recuar, tentar de novo, investigar hipóteses completamente loucas – mas, graças ao seu espírito crítico, ele não toma a especulação por verdade, não confia cegamente em suas hipóteses. Sob essas condições, é possível combinar o espírito crítico com o espírito aberto a novidades.

    Essas qualidades, juntamente com valores científicos éticos – colocar a produção de trabalhos de bom nível acima de qualquer conveniência social e econômica, por exemplo – são necessárias para que o investigador escolha sua própria direção de trabalho e vá gradualmente se orientando, corrigindo, aperfeiçoando, de modo a produzir uma obra autêntica e sólida. A direção da pesquisa, no entanto, precisa vir de dentro.

    Não é inteligente procurar competir com os países mais desenvolvidos no campo de batalha e com as armas que eles próprios escolheram. Quando se pensa em “pesquisa de ponta”, imagina-se normalmente a frente de luta em que os cientistas de primeiro mundo competem entre si, numa corrida por novos resultados, explorando os temas que estão na moda. Se entrarmos nessa disputa, teremos pouca possibilidade de sucesso. Mas há outras formas de fazer pesquisa. Há alternativas como dedicar-se a assuntos que parecem pouco importantes (que não estão em moda), ou trabalhar com os fundamentos da ciência. Vamos explicar isso.

    Cem anos atrás, a física parecia completa: havia teorias consideradas corretas abrangendo a mecânica, a termodinâmica, a óptica, o eletromagnetismo. Sabemos, no entanto, que no século XX a física foi totalmente transformada. Qual o ponto de partida dessa revolução? O estudo da radiação emitida por corpos incandescentes, a tentativa de medir a velocidade da Terra em relação ao éter, a pesquisa de descargas elétricas em gases rarefeitos e outras pesquisas semelhantes. Esses temas tinham pequena importância e era impossível prever que seu estudo pudesse levar a uma revolução na ciência. Mas levou. Se o Brasil se dedicasse a temas marginais, não poderia ter mais sucesso na ciência?

    Outra possibilidade é estudar os fundamentos da ciência. No caso da física, a quase totalidade dos pesquisadores utiliza, sem questionar, as principais teorias (como relatividade e mecânica quântica). No entanto mesmo uma teoria aceita não costuma ser perfeita. Sempre permanecem problemas de fundamentação – teóricos e experimentais – que são deixados de lado (algumas vezes, varridos para baixo do tapete). Para quem acredita que a ciência é a verdade eterna, não se deve procurar mexer nesses fundamentos. Mas para quem acredita que a ciência é um processo que não tem fim, e que há ainda algo a ser descoberto, a análise dos fundamentos do conhecimento atualmente aceito proporciona uma importante fonte de temas para pesquisa, que podem levar a resultados de extrema importância. Na antiga Grécia, a geometria já era um campo sólido de conhecimento e ninguém duvidava das “verdades geométricas”. No entanto, durante séculos, alguns pensadores isolados se dedicaram a analisar criticamente os fundamentos da geometria, explorando novas formulações. Isso levou, no século XIX, à criação das geometrias não-euclidianas – uma das maiores revoluções do pensamento humano. Como isso ocorreu? Através da pesquisa de dois matemáticos isolados, que trabalhavam fora dos grandes centros de pesquisa: na Rússia (Lobatchevski) e na Hungria (Bolyai). Não poderíamos também nos beneficiar dedicando-nos à pesquisa de fundamentos das ciências?

    Será falta de verbas o problema fundamental das pesquisas no Brasil? É claro que certo tipo de pesquisas exige enormes verbas. No entanto, em outros tipos de pesquisa, os recursos necessário são pequenos. Que montante de verbas foi necessário para o desenvolvimento da psicanálise, ou da psicologia de Piaget? Mesmo na área de física experimental de altas energias (uma das mais caras do mundo) uma adequada criatividade permitiram que César Lattes e seus colaboradores obtivessem resultados de importância internacional, através do estudo de raios cósmicos, com recursos financeiros bastante limitados. Partilho da visão de Zeferino Vaz, que sempre repetia que as três condições essenciais para o desenvolvimento científico eram cérebros, cérebros e cérebros.

    Que me desculpem os pesquisadores brasileiros que não se enquadram na minha descrição negativista. Penso que é preferível ser pessimista e crítico rigoroso do que adotar um otimismo tolo e complacente. Fechando-se os olhos aos problemas, torna-se impossível resolvê-los. Encarar de frente nossas falhas é o primeiro passo para tentar desenvolver nossa independência científica.
 

rmartins@ifi.unicamp.br


FONTE:

MARTINS, Roberto de Andrade. Independência cultural e científica: paralelos e diferenças. In Verbis (Instituto dos Magistrados do Brasil) 2 (14): 18-21, set. 1998.