César Rey Xavier

A Permuta dos Sábios - Um Estudo sobre as Correspondências entre Carl Gustav Jung e Wolfgang Pauli

São Paulo: AnnaBlume, 2003
ISBN: 85-7419-383-6
266 p

Ver informações sobre esta obra no site da Editora.

Prefácio
O intercâmbio entre um psicólogo e um físico

     Tentar estabelecer relações entre física e psicologia (ou entre física e arte, ou física e religião) é uma tarefa difícil. Qualquer autor que se aventure a buscar a interface entre dois campos tão diferentes corre graves riscos. Em qualquer estudo que queira comparar a física à psicologia pressupõe-se que o autor conheça e compreenda igualmente bem os dois assuntos. No entanto, verifica-se que esse pressuposto muitas vezes não é satisfeito. Encontramos obras escritas por médicos e psicólogos, tentando encontrar relações entre seus campos de estudo e a física quântica (por exemplo), nas quais se percebe claramente que os autores não compreendem os conceitos básicos da física moderna. Inversamente, há estudos escritos por físicos, tentando relacionar sua disciplina a outras áreas – como a psicologia ou a filosofia – e que pecam igualmente pelo desconhecimento quase total do outro termo de comparação. É compreensível que isso ocorra. Afinal, não é fácil adquirir competência adequada em um campo de estudos – e é mais difícil ainda obtê-la em dois.

      Evidentemente, o resultado de tentativas de aproximação entre as duas áreas por parte de quem não lida adequadamente com ambas costuma ser catastrófico. Por outro lado, um casamento adequado entre duas disciplinas distintas pode levar a resultados novos e excitantes, e o prêmio pode compensar o risco.

      A presente obra de César Rey Xavier mostra, a meu ver, quão gratificante pode ser o encontro entre a psicologia e a física. O objeto de estudo é o intercâmbio entre dois dos mais importantes pesquisadores dessas duas áreas, do século XX: Carl Gustav Jung e Wolfgang Pauli.

      A aproximação entre esses dois homens não ocorreu por motivos puramente intelectuais ou acadêmicos e sim por causa de problemas emocionais ocorridos com Pauli, que o levaram a procurar ajuda psicológica. Em um segundo momento, no entanto – concluída a terapia – Pauli e Jung mantiveram um relacionamento duradouro, em que amadureceu um intercâmbio de idéias a respeito dos fundamentos da psique e da física. Uma parte desse intercâmbio foi conservada sob a forma de cartas entre os dois pensadores – e essa correspondência constitui parte da documentação aqui estudada.

      Cada um dos dois personagens principais do presente estudo foi levado, gradualmente, a se aproximar da área oposta – ou, melhor dizendo, complementar. A atenção de Pauli já tinha sido despertada, em seus estudos sobre a física quântica, para o modo como o processo de observação interfere no objeto estudado, e isso posteriormente levou-o a pensar se poderia haver alguma influência mais profunda da subjetividade no mundo físico. Depois, quando paciente do processo terapêutico supervisionado por Jung, Pauli tomou contato direto com as forças simbólicas que afluíam do seu inconsciente e percebeu como todo o conteúdo consciente pode ser influenciado e moldado pelo dinamismo dos arquétipos. Paralelamente aos pares de opostos complementares da física moderna, como espaço-tempo e onda-partícula, que já conhecia por causa de sua profissão, Pauli se familiarizou, graças ao processo terapêutico, com as polaridades razão-emoção e consciente-inconsciente e, em seu processo pessoal de individuação, caminhou para uma unificação desses pólos. De tudo isso, aos poucos, brotaram nele duas importantes vertentes: a busca do papel desempenhado pelos arquétipos no processo de desenvolvimento científico; e a procura de uma base subjacente à polaridade físico-psicológico, que permitisse romper a separação entre o mundo material e o psíquico.

      Jung, por sua vez, já estava familiarizado com alguns aspectos da teoria quântica antes que ocorresse o intercâmbio com Pauli, e deve ter ficado especialmente impressionado com os aspectos de complementaridade de pares de opostos introduzida por Niels Bohr – o qual, como bem lembrado por César Xavier, foi influenciado pelo psicólogo William James e pelo pensamento oriental. A busca de uma totalidade subjacente aos opostos que nos são acessíveis pela experiência física apresenta uma forte analogia com a busca do Si-Próprio (Selbst), que supera as dualidades psicológicas. No entanto, parece que o impulso fundamental que agiu sobre Jung para lançá-lo a uma busca mais profunda das relações entre psique e física foi sua vivência de situações envolvendo ao mesmo tempo o mundo material e o mundo psíquico e que não podiam ser explicadas de modo causal – por exemplo, as “coincidências” significativas, e o funcionamento de oráculos como o I-Ching. Em 1930, sob a influência do sinólogo Richard Wilhelm (seu amigo), Jung convenceu-se de que havia uma relação profunda e incompreensível entre a manipulação aparentemente cega e ao acaso de varinhas de mil-folhas nas mãos do adivinho, por um lado, e toda a realidade psíquica e vital da pessoa que o consultava, por outro lado. Essa relação não causal, que depois denominou de “sincronismo”, parecia mostrar que, em um nível da realidade ainda não abordado pela ciência ocidental, o físico e o psíquico se combinavam, ou brotavam de algo ainda mais fundamental do que ambos – de uma realidade objetiva, mas que não era nem física nem psíquica.

      Havia, assim, diversos pontos de convergência entre Pauli e Jung, sob o ponto de vista de suas idéias. Por outro lado, tanto Pauli quanto Jung, longe de representarem uma visão consensual e já estabelecida, estavam explorando novos conceitos e se sentiam isolados de seus colegas profissionais. Seus caminhos se cruzaram, e cada um encontrou no outro o interlocutor perfeito para discutir suas dúvidas mais profundas.

      Alguns dos pontos acima indicados levaram, em 1952, a uma publicação conjunta dos dois pensadores: o livro A interpretação da natureza e a psique. Outros aspectos, discutidos na correspondência entre Pauli e Jung, só vieram a público recentemente, quando suas cartas foram publicadas.

      Todo esse mundo conceitual que transborda do encontro Jung-Pauli é explorado e discutido na presente obra de César Xavier. Trata-se de um estudo cuidadoso, feito por um psicólogo que pisa sobre ovos ao abordar os aspectos físicos da permuta, mas que consegue fazê-lo de forma competente, sem produzir uma omelete. Uma primeira versão deste livro foi defendida como tese de mestrado pelo autor, em 2001, no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tendo recebido merecidos elogios por parte da banca examinadora. A versão agora publicada coloca ao alcance de um público mais amplo o resultado de uma excelente pesquisa sobre o assunto.

Roberto de Andrade Martins
Grupo de História, Teoria e Ensino de Ciências
Instituto de Física “Gleb Wataghin”
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Grupo de História, Teoria e Ensino de Ciências – UNICAMP